terça-feira, 28 de maio de 2024

Atravessar Uma Ponte Em Chamas - Exposição de Berlinde de Bruckere N 12695




 

Atravessar Uma Ponte Em Chamas - Exposição de Berlinde de Bruckere



É logo após mostrar o bilhete que somos recebidos pela primeira obra de berlinde de Bruyckere, Letsel I (2008) montada por cima das escadas de acesso às exposições. A obra, que serve de prenúncio à exposição da artista, mostra-nos o que parece um corpo ou uma parte de um corpo, transfigurado de tal forma que se torna indecifrável para o visitante.


Pessoalmente, ao ver a obra, ocorreu-me as pinturas de Francis Bacon, que tratava o corpo e a carne de uma forma visceral, deformando-a, e, tratando o ser humano apenas como um corpo, apenas como carne e nada mais. O facto da obra da artista estar pendurada por um gancho de carne/ açougue remete para a carne suspensa nos talhos, acontece que aqui, não se trata de carne, mas sim de cera, moldada e trabalhada para que se pareça o mais semelhante possível, conseguindo assim, causar o mesmo impacto nos visitantes.

O título da exposição temporária de Berlinde De Bruyckere que inaugura o Museu de Arte Contemporânea/CCB, foi retirado de um conto do escritor chileno Roberto Bolaño. Imagem poderosa e sugestiva do risco da passagem de uma margem a outra, é também simbólica da atração pelo outro e do medo do outro, da transformação e da metamorfose, e do trauma que qualquer processo de migração implica.

Ancorada na história da arte — nomeadamente na pintura renascentista —, a obra de Berlinde De Bruyckere liga arquétipos existentes a novas narrativas, redescobrindo temas, obsessões ou recorrências do mundo das imagens que povoam a nossa memória coletiva e desenvolve assim, o trabalho em torno de temáticas marcantes na arte: morte, da redenção, sexo, dor e memória. Inspirada na figura intermediária do anjo, esta exposição propõe uma reflexão sobre a relação com o outro, seja como transcendência, como fisicalidade do toque ou como projeção pessoal.

Primeira Sala



Ao entrar na primeira sala da exposição sentimo-nos arrebatados pela monumentalidade do espaço. As duas figuras escultóricas presentes na primeira sala intituladas de Arcangelo I e Arcangelo II causam-nos alguma estranheza por se assemelharem, numa primeira instância a um corpo humano coberto por um manto de pele, aqui, Berlinde de Bruyckere explora a figura do anjo como símbolo de mediação entre o humano e o divino e por esse motivo ambas representam um anjo caído, uma entidade que passou da transcendência à imanência. 


Ainda na mesma sala encontram-se justapostas às esculturas as colagens/obras de parede da série It Almost seemed a Lily, desenhos expostos em molduras iguais em sequência que explora a temática do desejo e da sublimação. Na sequência das obras na sala da exposição, esta série da artista é o primeiro momento em que se vê, de forma muito clara, através do desenho, da colagem e até da cor utilizada, o caráter erótico presente na composição de cada uma das obras. A artista explora estes temas em diferentes momentos do seu trabalho e de uma forma muito ambígua, por vezes quase imperceptível, no entanto, a potência erótica, no caso destas cinco obras está claramente presente.

Segunda Sala


Na segunda sala, entre o desenho, a escultura e a instalação, a cera emerge como um material essencial na construção das diferentes narrativas a escultura Palindroom, 2019, de aparência fálica mas natureza feminina, enfrenta um conjunto de esculturas de parede feitas de couro e cera denominadas Met Tere Huid, 2014, poderosas evocações de formas vulvares. 

 O caso da obra Palindroom é particularmente significativo: um palíndromo é o termo dado a uma palavra, ou a um grupo de palavras, que pode ser lido na sua ordem normal, bem como do fim para o princípio. A escultura apresentada mimetiza ummodelo utilizado para a reprodução de cavalos. Embora a sua configuração evoque um pénis, a sua função é precisamente a contrária, a de ser penetrado. De uma forma complexa, trata-se de um palíndromo entre o interior e o exterior, o objeto que aparenta penetrar é na verdade penetrado, um objeto quase hermafrodita na simbologia que convoca.

Terceira sala 

Na terceira sala a característica de exposição até então transforma-se completamente. Aqui as paredes da sala são pintadas de negro e a sala está completamente fechada, não existindo nenhuma fonte de luz natural, apenas dois holofotes que incidem diretamente sobre as duas obras existentes, resultando na concentração do destaque somente nas obras e não onde estão inseridas. Como foi antes referido, a obra artística de Berlinde de Bruyckere é muito ligada ao diálogo criado entre diferentes tempos históricos da arte. Para si, existem diálogos que podem ser criados entre duas peças mesmo que entre elas se passem 500 anos. 

Para a concretização desse diálogo entre tempos históricos, o Museu Nacional de Arte Antiga cedeu a pintura de Lucas Cranach Salomé com a cabeça de São João Batista, 1510, que confronta a obra Infinitum II, 2017–2019. 

Ainda que contraditório o enquadramento da obra na exposição Contemporânea , na verdade uma obra para se definir Contemporânea é porque a sua importância ou o seu significado pode ser aplicado intemporalmente, até nos dias de hoje, e a obra de Salomé com a cabeça de São João Batista consegue estar ao lado das obras de Berlinde de Bruyckere e mais importante, acrescentar e dialogar com o conceito da exposição.

Quarta sala

Na quarta sala somos confrontadas com esculturas colossais verticais com aparência de escudos intituladas Penthesilea (a rainha amazona morta por Aquiles), ostentam moldes de cera de peles de animais que, abertas e drapeadas,  remetem-nos para a pintura de Piero della Francesca, Madonna del parto, 1460. Estas esculturas pretendem fazer sentir que é na verdade a pele que serve  de escudo para o corpo.

O fascínio pelo método de trabalho de Berlinde de Bruckere prende-se exatamente no seu processo de criação e dos materiais que usa para as suas obras. É precisamente nesta sala que se verifica o fascínio em decifrar de que material é feito esta "pele" que está a proteger estes escudos. À primeira vista, todos os sinais remetem-nos para pele animal, as cores, os pelos, no entanto, e é exatamente este o objetivo da artista, nem tudo o que parece o é, e haver este lado ambíguo em todas as suas peças é propositado. Estas "peles" são na verdade feitas em cera, e coloridas com a cor vermelha azul e cinzenta para parecer carne viva e assim, causar certas emoções, como o desconforto, ao espectador.

Quinta Sala 




 Na quinta e última sala o espectador é novamente surpreendido pela dimensão da sala e pelas obras nela inserida, o ambiente criado por de Bruyckere apela à reflexão e ao silêncio. Em termos de iluminação, é a sala mais iluminada de toda a exposição, com candeeiros presos ao teto que incidem sobre toda a sala e projectam uma forte luz branca que é intensificada ao ser refletida pelo sal branco colocado sob as obras e sob o chão.

A última sala da exposição apresenta a instalação ALETHEIA (on-vergeten), 2019, palavra grega que significa desvelamento, ou o que não está oculto. O espectador pode deambular entre os depósitos de peles de animais moldadas em cera e empilhadas em paletes de madeira, alegoria das inúmeras camadas de sentidos e possíveis interpretações que reverberam nas várias situações que a exposição propõe. As obras nela inseridas são side-especific, ou seja, foram feitas mesmo para esta sala de exposições do MAC. As obras são camadas de cera, a imitar peles, estendidas ao sol e cobertas de sal grosso, fazendo referência à tradição portuguesa para conservar a carne, o peixe e a comida. Na última sala da exposição compreende-se que já não existe corpo, as peles estão libertas de um corpo e apresentam-se no seu estado final, mortas. No entanto a escolha da utilização do sal remete para esta conservação da carne,  para que possa, a partir daqui,  surgir de uma nova maneira a uma nova vida. 






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