sábado, 3 de junho de 2023

Lindos dias?

‘Lindos Dias!’ (‘Happy Days’) de Samuel Beckett foi uma peça de teatro que esteve presente de 27 de abril a 7 de maio, no Teatro Municipal São Luíz, encenada por Sandra Faleiro e interpretada por Cucha Carvalheiro e Luís Madureira.

‘Happy Days’ foi escrita em 1960 pelo escritor, dramaturgo e poeta irlandês Samuel Beckett e é um exemplo de peça do movimento do Teatro do Absurdo, que desafia as convenções teatrais convencionais, apresentando personagens absurdas em situações absurdas, o que confirma o contexto em que surgiu: no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, onde o teatro reagiu à sensação de alienação e falta de sentido na sociedade, representando situações ilógicas para explorar questões fundamentais da existência humana. 

Samuel Beckett é conhecido por criar peças de teatro e romances que exploram temas como a condição humana, o absurdo da existência, a solidão, o vazio e a linguagem, e caracteriza-se por um estilo experimental e minimalista, com diálogos concisos e personagens em situações muitas vezes desesperantes e cómicas. É, amplamente, considerado um dos escritores mais influentes e importantes do século XX: a sua escrita influenciou uma geração de escritores e dramaturgos, e as suas obras continuam, hoje, a ser encenadas e estudadas.

A encenação de Sandra Faleiro para ‘Lindos Dias!’ é, pelo que fui capaz de perceber, muito fiel à peça original ‘Happy Days’, e os atores fazem um papel absolutamente cativante. A peça é, praticamente, uma hora e meia de um monólogo, pelo que considero notável a interpretação dos atores que deixaram o público perfeitamente vidrado.O cenário e figurinos realizados pela Maria João Castelo transportam-nos para a ficção ali representada criando um equilíbrio interessante entre o que ocultam e o que revelam tanto nos objetos como na composição do espaço, o que se harmoniza lindamente com o contexto e evolução da narrativa. Também o delicado mas pujante desenho de luz pela Cristina Piedade nos aproxima das emoções que os atores vivem em palco e marca o desenrolar da peça.

Fotografia: Estelle Valente


Numa paisagem desértica, a peça apresenta apenas duas personagens: uma mulher, Winnie, que se encontra enterrada num montículo de terra até à cintura e o seu marido, Willie, quase sempre escondido aos olhos do público. A peça está dividida em dois atos, que são delimitados pelo tocar de um sino que indica o começo e o fim do dia. Grande parte do tempo é passado com Winnie sozinha na sua colina a falar, por vezes dirigindo-se a Willie, que parece não ouvir e que, muito raramente, murmura qualquer coisa. Winnie fala sobre a sua vida e a sua relação com o seu marido numa tentativa de manter histórias, hábitos e lucidez num ambiente soturno, remoto, decadente, que nos dá a sensação de se estar a dissipar, tanto que, à medida que a peça avança, a situação de Winnie piora gradualmente, ficando enterrada mais profundamente no solo. Winnie parece ignorar, candidamente, a sua condição e entrega-se a ocupar mais um “lindo dia”: reza, prepara-se, fala, revisita memórias e manipula objetos triviais que guarda numa mala ao seu lado.

Uma postura que à partida nos parece cheia de esperança e alento, mesmo quando tudo à sua volta é vazio, rapidamente evolui para uma esperança algo forçada, e até preocupante, ingénua, que nos faz ter vontade de saltar para o palco e fazê-la inquietar-se com a sua situação. Por outro lado, compreensível. Para quê preocupar-me com as coisas sobre as quais nada posso fazer para mudar? Ficamos com uma sensação de impotência face ao que ali se passa, e acredito que o trauma e a devastação causados pela guerra tenham influenciado a visão sombria e absurda da vida representada na peça.


Fotografia: Estelle Valente


Algo que pontua muito a narrativa, é o sentido de humor e ironia que Cucha Carvalheiro traz na interpretação que faz de Winnie, e diz a própria numa entrevista que deu em 2018 sobre a estreia de ‘Lindos Dias!’: “o homem é o único animal que ri e ri porque tem consciência da morte”. Winnie, apesar das circunstâncias limites em que está, é uma otimista, e ensina-nos a dar a volta à fatalidade, servindo-se do humor em situações aparentemente sem esperança.
Da mesma forma, nesta encenação de Sandra Faleiro em que é explorada a vertente metateatral do texto de Beckett e sua dimensão tragicómica, a paisagem desértica convocada pelo autor é um teatro em ruínas e os atores dois velhos “clowns” enterrados nos seus escombros, o que serve de leitura para o que se vive, atualmente, na cultura.

Em conclusão, ‘Lindos Dias!’ é um exemplo de arte que transcende o tempo, sendo uma peça altamente simbólica e atual, uma reflexão angustiante ou otimista sobre a condição humana, sobre a inevitabilidade da morte, sobre o estado do teatro e onde a falta de ação significativa, o diálogo fragmentado e a situação absurda dos atores desafiam as expectativas do público, estimulando uma reflexão mais profunda através do humor e ironia. ‘Lindos Dias!’ é um testemunho da genialidade de Samuel Beckett e do seu impacto duradouro no teatro e na literatura.



Fotografia: Estelle Valente



'Lindos Dias!'
'Happy Days' de Samuel Beckett
Encenação: Sandra Faleiro
Interpretação: Cucha Carvalheiro e Luís Madureira
Teatro Municipal São Luiz
27 abril – 7 maio
Quarta a sábado, 19h30; domingos, 16h
Sala: Mário Viegas
Duração: 1h30 (aprox.)




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