O trabalho do artista suíço Uriel Orlow apresentou-se-nos com Histórias Enraizadas, exposição multimédia que esteve patente na galeria principal da Casa da Cerca, em Almada até ao passado dia 5 de março.
Uriel
Orlow é artista e escritor, a trabalhar entre Lisboa, Londres e Zurique. Graduado
em 2002 com um Doutoramento em Belas Artes pela University of Arts London,
Orlow é também professor, tendo lecionado em várias Universidades londrinas e é
atualmente docente na Universidade de Westminster e na Suíça na Zurich
University of the Arts.
A
sua obra já esteve presente em espaços um pouco por todo o mundo, em museus
como o Tate em Londres, mas também em festivais de filme e galerias na Cidade
do México, Vancouver, no Cairo, Singapura e Melbourne. Destacam-se as mais
recentes mostras do seu trabalho a solo em Bruxelas, Atenas, Mainz, Florença e
a mais recente em Almada. Em Portugal, o seu trabalho também já esteve presente
em Lisboa no MAAT, na Galeria Quadrum e nas Carpintarias de São Lázaro.
Histórias
Enraizadas, com
curadoria de Filipa Oliveira, compilou sobretudo registos fotográficos e em
vídeo, de caracter documental, reunidos in situ e mostrando
várias espécies e intervenções humanas que as rodeiam. Encontrávamos as obras
dispostas por toda a galeria do Centro de Arte Contemporânea, numa
multiplicidade de formatos. Desde impressões fotográficas [Piz Linard
(1835-2011), 2021], reproduções multimédia em ecrã e projeções de grande
escala dos vídeos da série Up, Up, Up (2021), trabalhos de serigrafia e corte
de madeiras [Forest Essentials Take Two (Sobreiro), 2022] e ainda uma
série de desenhos.
Atuando
numa vertente multimédia, o seu trabalho consiste sobretudo em vídeo e
instalação, obras que pretendem constar em locais escolhidos a dedo e criar a
partir deles ambientes dinâmicos e narrativas que interligam o Homem às
plantas. Desta forma se encontravam expostas, na extensão do Centro de Arte
Contemporânea. A sala longa da galeria principal possui um conjunto de janelas
que costumam ser a fonte de luz primária e natural encontravam-se fechadas para
acomodar a visibilidade das obras multimédia (figura 1). As projeções de vídeo
eram feitas diretamente nas paredes da galeria, a um canto, rendendo uma área considerável
como inutilizável quando grupos maiores se reuniam naquela zona – é esperado do
espetador que visualize dois vídeos, um em cada parede, em sintonia, tendo de
se posicionar virado a ambos de forma que isso seja possível, mas sem ocultar nenhum
a um outro visitante.
Nessa lógica, um outro conjunto de obras em vídeo da série Dedication (2021) permita por sua vez uma fácil visualização de cada um dos ecrãs, espaçados entre si, bem como o caminhar entre eles. A série trata fungos e os seus sistemas enraizados, subterrâneos e longo da mão humana, e é acompanhada por escultura que se assemelha a essas raízes. Nesta mostra em Almada, a escultura foi montada nas ripas do teto de madeira da galeria (figura 2).
Questiono
a intencionalidade e significância da disposição das obras na sua generalidade,
talvez demasiado aliviada – o que não deixa de ser um ponto extra para a facilidade
de deslocação – ao custo de certas zonas se tornarem um pouco desguarnecidas – preferindo
a utilização da totalidade dos espaços da galeria com um número reduzido de
peças.
O
meu primeiro contacto com o trabalho de Orlow foi na cidade de Aberdeen, na
Escócia, quando uma porção da sua videografia esteve presente na nona edição do
British Art Show, acompanhada nas várias salas por diversas outras
obras. Com curadoria de Hammad Nasar e Irene Aristizábal, o BAS9 reuniu um
conjunto de 47 artistas na Aberdeen Art Gallery durante o verão de 2021, numa
mostra focada em questões políticas, sociais e ambientais e soluções centradas
nos temas “Healing, Care and Reparative History, Tactics for Togetherness,
Imagining New Futures”.
Orlow
demonstra um forte interesse por botânica e pelos temas do aquecimento global e
extinção da flora enquanto produtos do posicionamento superlativo da humanidade
face à natureza, e do papel ativo das plantas na História, com especial foco às
dicotomias entre colónias e povos colonizadores. O artista descreve um dos
objetivos do seu trabalho como procurar “mostrar as plantas enquanto atrizes na
política e na história” [1].
O
processo de trabalho de Uriel Orlow é interdisciplinar, fundindo a arte com a
biologia, etnografia, história e
política, assentando-se numa metodologia de pesquisa seguida e orientada para a
prática. O artista explora casos histórico-práticos associados a localidades e
plantas específicas e captura a sua essência com meios estáticos ou em
movimento, pintando a narrativa associada a elas associada e manifestando
através destas questões relacionadas com os conflitos humanos.
Numa
das vídeo-instalações apresentadas também durante o BAS9, Learning From
Artemisia (2019), Orlow explora o caso específico da erva medicinal Artemisia
afra, originária da Républica Democrática do Congo e altamente eficaz
contra a malária na sua forma natural ou sob forma de infusão. A instalação
compila em vídeo registos da plantação da erva, da realização de um mural e de
um concerto pela população local em ode à Artemísia. A cooperativa do
Lumbumbashi responsável pela plantação de Artemísia prova continuamente
o sucesso das suas infusões no tratamento da população contra doença que afeta grande parte da Africa
central, mas a mesma é descartada pela Organização Mundial de Saúde, após estudos
sob a extração das substâncias de uma outra variante da planta a terem
demonstrado ineficaz dada a rápida resistência humana face à medicação criada a
partir de ditos extratos. Dada a proibição da sua utilização na Europa e
interrupção da pesquisa cientfica associada à espécie, a pequena cooperativa
feminina de Lumata, Lumbumbashi, continua a sua produção restrita à população
próxima, sem poder explorar os benefícios da relação com os “grandes” sistemas
de saúde globais [2]. O caso da Artemisia afra remonta aos muitos casos
de exploração de territórios de colónias e ex-colónias para a extração de
recursos, com uma certa ignorância pelas práticas locais. Orlow explora esse confronto
entre mentalidades e sistemas de conhecimento europeus e indígenas numa variedade
dos seus trabalhos.
No
caso português, Uriel Orlow inspirou-se no acervo da Xiloteca do Palácio da
Calheta, no Jardim Botânico Tropical de Lisboa, que reúne uma coleção de cerca
de dez mil amostras de madeiras colhidas das antigas colónias portuguesas, algumas
de espécies em extinção, de elevado valor cultural e científico. Orlow trata os
temas da interferência do poder português nos sistemas locais das ex-colónias e
na fauna destas natural, explorada sobretudo para a construção de barcos, e da desflorestação
da ilha da Madeira por parte dos exploradores vindos do continente entre os
séculos XV e XVI. O eventual tráfico de escravos das colónias africanas para
trabalhos na obtenção de madeira de construção e na plantação e extração de açúcar
de cana levou ao rápido declínio nos materiais e à quase-extinção de espécies pelos
anos 1520. Alguns trabalhos de serigrafia usando exemplares madeiras relatam as
histórias por detrás do papel de espécies como Daniellia oliveri, originária
da Guiné-Bissau e presentes no acervo da Xiloteca, constavam entre as obras mostradas
em Histórias Enraizadas (figura 4).
A
relevância da presença da obra de Orlow e de outras exposições deste género é
justificada pelo contexto da história recente no que diz respeito à relação
humana com o planeta e entre si mesmos, e salientada pela posição de Almada e
dos seus cidadãos face a assuntos dessa natureza. Almada cidade e Almada
concelho vêm de há longa data a apresentar-se como zonas de abertura às várias
comunidades e da mesma forma a incentivar ao contacto da população com a
natureza, proporcionando eventos recreativos, culturais, políticos e artísticos
em espaços verdes, apelando à sua educada utilização, preservação e conservação.
Mostras
e atividades com esta ideologia na área das artes são recorrentes e frequentes
nos mais diferentes espaços da cidade. Neste 1 de abril deu-se a mais recente
edição do MUDA (Mercado Urbano de Almada), junto ao farol no largo de Cacilhas,
contando com um extenso número de artistas emergentes e independentes, muitos
com ligações à temática. Promovidos pelo Programa da CMA Março à Solta,
durante todo o mês ocorreram inúmeros outros eventos desta natureza, de
participação gratuita, no Parque da Paz, no Almada Green Market, na Mata dos
Medos, no Ponto de Encontro, no Complexo Municipal do Feijó e na Casa da Cerca
, para nomear alguns dos espaços.
Igualmente,
Histórias Enraizadas, juntamente com outras três (Aprendemos Juntos
com a Câmara a Desenhar dos Serviços Educativos da Casa da Cerca, A Vigília
das Feras de Tamara Alves, e não me peça que lhe de pormenores de
Ana Vidigal), fizeram parte da mesma temporada que contou com uma primeira
mostra a 5 de novembro de 2022, na presença e com discurso de Uriel Orlow e da
presidente da câmara Inês de Medeiros na sua inauguração.
A exposição esteve patente durante as celebrações dos 20 anos da inauguração d’O Chão das Artes – Jardim Botânico, parte integral da Casa da Cerca. Enquanto centro de arte com uma relação intrínseca ao natural – situado na zona ribeirinha, “Almada velha”, que igualmente procura renovação e conservação – com um jardim botânico e um espaço recreativo aberto, foi o espaço adequado para receber esta exposição, por sua vez necessária para continuar a sementar o erro humano face à natureza, incutir ao discurso do planeta, aos sinais que nos enviam e incentivar a instituição imediata de soluções.
[1]
Orlow, U. (2022) em discurso na conversa ecooperations, documenta Institut.
UK14, Kassel. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jm5izPbdQ-Y.
[02:30];
[2]
Como consta na documentação que acompanha a peça Learning From Artemisia (2019);
---
Figura
1. Up, Up, Up. Vídeo-instalação
HD. 9'32'', 2021.
Figura 2. Dedication.
Vídeo-instalação
HD em 5 ecrãs. 3'21'', 2021.
Figura
3. Dedication (still).
Figura 4. Forest
Essentials Take Two (Sobreiro). Serigrafia
sobre madeira, 42 x 66cm, 2022
Figura 5. Casa da Cerca (entrada). Almada, Setúbal.
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