De 15 a 26 de março de 2023,
decorreu a 22º edição do Festival de Animação de Lisboa, também conhecido como
Festival Monstra. Esta edição celebra os 100 anos da primeira animação
portuguesa, O Pesadelo do António Maria, de Joaquim Guerreiro, estreado a 25 de
janeiro de 1923. Como é habitual, este festival reúne longas e curtas-metragens
do mundo da animação, escolhendo todos os anos um país específico para
homenagear, sendo este ano o Japão. Para além disto, para um público mais
jovem, foram demonstradas as primeiras curtas da Disney, na Cinemateca Júnior,
em comemoração dos estúdios centenários por de trás dos clássicos.
O Festival espalhou os filmes por
toda a área metropolitana de Lisboa, organizando sessões em vários espaços como
o Cinema São Jorge, o Centro de Artes de Sines, o Museu da Etnologia, o Museu
do Oriente, entre outros. Falta ainda destacar, o ovo de ouro desta edição, o
galardoado Ice Merchants, de João Gonzalez, que ganhou o grande prémio
Monstrinha Inatel, no valor de 1000 €. Numa edição dedicada ao Japão, destaca-se
a sessão das 17h, do dia 19 de março, onde decorreu no museu do Oriente a
demonstração de 8 filmes de animadores japoneses. Esta sessão compõe 3 filmes
de Atsushi Wada e outros 5 filmes da chamada Nova Geração.
Atsushi Wada, nasceu em 1980 e
estudou na Tokyo University of the Arts. Começou a produzir filmes de animação
em 2002, e tem encontrado apreciação moderada a nível internacional, ganhando
mesmo o prémio Urso de Prata, no Festival Internacional de Cinema de Berlim graças
à sua obra “The Great Rabbit”, também em exposição nesta edição do Monstra. As
suas obras são representadas com finos desenhos a lápis, com leves tons de cor,
num tom minimalista e simplista, de formas básicas e arredondadas, com subtis e
discretos movimentos, onde a fluidez é chave.
Numa edição dedicada ao Japão,
será indispensável realçar 2 obras específicas, por explorarem de formas
distintas a expressão nipónica 何それ, “nani
sore” – em português, “o que é isto?”. Estas duas obras, obrigam o
observador a questionar-se sobre o que acabou de ver, pairando uma interjeição
de dúvida sobre o público. Num mundo onde tudo parece explicado, onde toda a
informação está disponível à distância de um click, é deveras relevante
debater sobre as qualidades daquilo que não esclarece, do dúbio e incerto. Assim,
este espaço será usado para incidir nas curtas “Small People with Hats”
de Sarina Nihei e “In the Big Yard Inside the Teeny-Weeny Pocket” de
Yuki Yoko.
Sarina Nihei, é uma ilustradora e
freelancer japonesa, que cria e dirige filmes de animação. O seu estilo de
animação, caracteriza-se pela expressão do desenho à mão, pela exploração do
surreal e por uma essência estónia, esta pela qual desenvolveu um amor
particular, enquanto estudava na Tama Art University, em Tóquio. As suas obras
animadas, têm sido reconhecidas por todo o mundo, valendo-lhe cerca de 10
prémios e 36 mostras diferentes, frisando que em 2016 ganhou o “Best Post-Graduation
Film” nos British Animation Awards.
A curta de Sarina Nihei, Small
People with Hats, de 2014, criada como prova final da sua formação no Royal
College of Art, em Londres, mostra, em cerca de 7 minutos, uma sociedade
dividida em dois grupos distintos: os homens comuns e os pequenos homens com
chapéu. Os homens de chapéu, são vistos como descartáveis, como objetos, ou até
mesmo lixo. Quando um dos homens de chapéu é esmagado, por um homem comum e
morre, surge um camião do lixo, que vem recolher o corpo. Após esta primeira
cena, ficamos a conhecer uma sala de reuniões, onde homens de fato decidem, com
um dado, qual a maneira pela qual o homem de chapéu morre, numa total desvalorização
pela morte, num tom de brutalidade mordaz. Esta e outras cenas no decorrer do
filme, revelam um conto alegórico, bizarro e violento, que espelha a sociedade
real em que cada um vive, onde a segregação é um problema real, ao qual os
segregados não conseguem escapar, sem a ajuda de alguém fora desse infortúnio.
As personagens dos homens comuns, têm noção completa desta realidade distópica,
porém tudo isto é banal, por isso não é vista de forma depreciativa, nem é
escrutinada a fim de a mudar, é somente um dia normal.
O mundo nesta animação, é desenhado e pintado à mão e as personagens não têm falas, apesar de existirem diversos efeitos sonoros simples, que materializam as onomatopeias ou ruídos daquilo que se passa, retratando uma sociedade absurda e disfuncional, de uma forma peculiar, limpa e subtil. É assustador e inquietante, pensar que este pode ser um retrato do agravamento do mundo real atual, ou um espelho do que já foi, no mundo da escravidão negra. Uma animação com um conceito complexo, embora transmitido de forma simples, clara e cativante. Encaixa-se perfeitamente no género de comédia negra – uma animação de escárnio e mal dizer –, por retratar jocosamente um dos piores aspetos da nossa realidade. Porque é que um homenzinho com chapéu acabou de ser morto por outro que caía de um prédio? O decifrar do incomum, na procura pela peça num puzzle animado, tentando concluir exatamente tudo aquilo que a imagem transmite.
A expressão 何それ aqui é simples, tem um fio condutor, mas
ainda permite perguntar “o quê?”, visto que a ação contém elementos que
dificilmente são explicados. Trata-se de uma obra consciente, retratada de uma
forma satírica, com imensa violência e mistério. A frieza e crueldade desta
curta é nivelada pelo ar inocente das personagens, algo que é inconscientemente
provocante e convidativo, obrigando a permanecer atento à animação. Todavia, a
obra seguinte, leva esta noção a um nível extremo. De seguida, as
palavras não fazem justiça à narrativa – se é que esta existe – pois a curta
contém uma essência extravagante que não se transpõe para texto, deixando o
observador sem resposta áquilo que viu.
Yuki
Yoko, nasceu em 1987, é ilustradora, animadora e diretora de filmes e vídeos de
música. Em outubro de 2019, partiu para a Dinamarca num programa de residências
artísticas. Por não falar a língua local, nem inglês, Yuki, utilizou muito o
seu diário gráfico para desenhar, apontar emoções e pensamentos, de modo a anotar
memórias de uma altura que caracterizou como particularmente enriquecedora e
especialmente estimulante. Mais tarde, as fotografias e desenhos do seu caderno
foram transformados na animação seguinte.
In the Big Yard Inside the Teeny-Weeny Pocket, de Yuki Yoko, foi lançado em 2022 no Japão. Em 6
minutos, o observador é colocado no meio de centenas de explosões, expansões e
diminuições, é colocado a flutuar e a afundar, onde algo se separa e outro
tanto conecta-se. Através de desenhos a lápis de cor e lápis de cera, de uma
expressão infantil e fugaz, a ação é desconcertante, esotérica, confusa, mas
visualmente estimulante, constantemente a brilhar, mexer, com figuras cheias de
cores, em algo que vive num mundo quase psicadélico, como se as figuras
estivessem num parque de diversões para crianças, sob o efeito de
estupefacientes, criando fractais daquilo que agora é uma realidade
policromática. Para elevar estas sensações a outro patamar, a trilha sonora é
igualmente complexa, ondulante e vibrante, abordando vários géneros como drum
& bass, rock, psych, noise, metal e até 8-bit, flutuando por entre
variações de melodias e sensações divergentes, onde vozes cantam, gritam e
gemem, transmitindo algum desconforto num intenso desconcerto. Há também vozes
que narram dizeres japoneses obscuros, que dificultam a compreensão do filme. A
dissonância auditiva casada com a euforia visual, vão contando pequenos
episódios, onde não é possível decifrar, se existe uma narrativa, pois não é
claro em nenhum momento – apesar de existirem cenas com personagens iguais,
estas não parecem seguir um rumo.
Tudo isto contribui para uma experiência
que tanto é supérflua como carismática, pois parece demais, mas é essa
abundância de elementos que tem este efeito magnético no olhar. Como última
curta, da mostra deste dia, o público abandonou a sala com um olhar vazio, mas
com uma cabeça cheia de dúvidas – o que é que acabei de ver; o que foi isto; o
quê; han? Apesar de chamativo, em contraposto está o seu aspeto sem orientação,
excessivamente frenético e a falta de um aviso para pessoas com
fotossensibilidade. É tanto, que permite perder-se no todo, passando assim a
ser menos, do grande que é.
Estas duas curtas aqui apreciadas,
exploram satisfatoriamente o conceito abstrato da dúvida, da sensação de
desconhecimento em busca de esclarecimento. A falta de informação ou o excesso
desta sem nexo, carece de clareza e assim induz num estado de cativo
desconfortável, onde o observador tenta ao máximo decifrar aquilo que viu e
sentiu. Quando existe uma barreira de linguagem e aquilo que é digerido é assim
tão complexo, considera-se que é ainda mais estimulante, embora isso não
significa que interesse necessariamente. O observador pode perder interesse
assim que acaba a experiência por ser “demasiado estranho e conceptual”, mas
sem dúvida, que estas obras prendem os olhos à tela enquanto estão em
movimento. São duas obras destinadas a quem gosta de filmes independentes de
animação, de estilos incomuns, numa narrativa ambígua, que não dá a mão ao
observador, deixando espaço para se equivocar e criar as suas próprias ideias
sobre aquilo que acabou de ver.
-------------------------------------------------------------------------------------
Nihei S.(2014), Small People with Hats
https://www.youtube.com/watch?v=eoDEvnT0D9k
Yoko Y.(2022), In the Big Yard Inside the Teeny-Weeny Pocket
https://www.youtube.com/watch?v=uJ594ndih4U&list=PL547TQbdoWArCNlK71s1AFcYy5vph34oK&index=2
Sem comentários:
Enviar um comentário