Pensar sobre a velocidade a que vivemos atualmente, o impacto que a mesma tem na consciência do Eu e sobre a nossa identidade, é manifestamente diferente de a viver. Por um lado, há um reconhecer do caos, pensar sobre, racionalizando-o. Por outro, é precisamente o contrário. O caos, mesmo quando reconhecido, é-nos tão próximo que parece que nos envolve ou num abraço asfixiante, ou numa seda apática. Falo, claro, de um ponto vista geral. Só recentemente a minha vida – passo a expressão, entre muitas aspas – “ganhou” esta aceleração vertiginosa sobre a qual tenho vindo a pensar. A experiência sensorial que envolve o fenómeno é, sem qualquer dúvida, mais intensa no que toca ao som/audição. O som, ao contrário da imagem, que, por norma, consiste numa representação de algo, é uma propagação de onda. A característica física do som interage com o ser humano diretamente, revelando, por vezes, ser uma experiência impactante e intensa: o som é recebido por nós através de vibrações que são processadas e compreendidas neurologicamente.
Em A Transformação[1] de Franz Kafka, a
descrição que o autor tão bem faz por palavras, descrevendo os pensamentos,
monólogos e diálogos, permitiu-me também construir a dimensão sonora de toda
aflição, stress e confusão. Conseguimos ouvir o tom com que Samsa se interroga,
a preocupação da irmã e dos pais. Os passos, o ranger das madeiras. Mas também
conseguimos ouvir o ruído do comboio, a pressa, e, acima de tudo, ouvir os sons
da solidão, da impotência, do absurdo, da frustração, da burocracia, da
opressão e da desumanização. De toda a pressa para chegar ao trabalho, uma
pressa absurda que pesava mais que qualquer transformação anómala, destruidora
do seu bem-estar.
Mas o fenómeno que hoje me apetece abordar, é precisamente o
contrário: o que é que podemos ouvir quando há ausência de som?
Tinnitus[2]
É a percepção do som de um apito agudo que podemos ouvir quando
não há nada à nossa volta que produza som. Hoje, 1 em cada 7 pessoas pelo mundo
inteiro experiencia este fenómeno.
Marc Fagelson explica: Quando ouvimos algum som, as ondas
sonoras chegam a várias partes do nosso ouvido, criando vibrações que deslocam
os fluidos da cóclea – localizada no ouvido interno e responsável pela função
auditiva. Se as vibrações forem suficientes, provocam uma resposta química que
as transforma em sinais bio-elétricos. Estes impulsos nervosos são
retransmitidos através da via auditiva até ao cérebro, resultando nos sons que
percepcionamos. No entanto, na maioria dos casos de tinnitus, os sinais
nervosos que produzem estes sons misteriosos não atravessam o nosso ouvido. São
gerados internamente, pelo próprio sistema nervoso central. Normalmente, estes
sinais auto produzidos são uma parte essencial da audição. Todos os mamíferos
demonstram atividade neural constante a partir das suas vias auditivas. Quando não
existe som, esta atividade estabelece na sua base um código neural para o
silêncio. Quando um som surge, esta atividade muda, permitindo ao cérebro que
distinga o silêncio do som. Mas a saúde do sistema auditivo pode afetar este
sinal de segundo plano. Sons altos, doenças, toxinas e até o envelhecimento
podem danificar as células da cóclea. Algumas destas células conseguem
regenerar numa questão de horas. Mas se morrerem células suficientes, ao longo
do tempo ou de uma vez, o sistema auditivo torna-se menos sensível. Com menos
celulas a retransmitir informação, o som que chega gera sinais nervosos mais
fracos. E alguns sons ambiente podem ser perdidos completamente. Para
compensar, o nosso cérebro dedica-se a monitorar a via auditiva, mudando a
atividade neural enquanto procura sintonizar-se para adquirir um sinal mais
claro. Aumentar esta atividade neurológica de segundo plano, pretende
ajudar-nos a aumentar o processamento de “inputs” auditivos mais fracos. Mas
também pode mudar a base da atividade neural para o silêncio de tal forma, que
a ausência de som não soa nunca mais como o silêncio. Não é necessariamente uma
coisa má, pois não possui consequências negativas. Mas em casos especificos,
episódios de tinnitus podem gatilhar memórias traumáticas para algumas
pessoas ou sentimentos negativos, que aumentam a intrusividade dos sons. Este loop
psicológico leva, muitas vezes, a uma “bothersome tinnitus”, que pode
potenciar os sintomas de PTSD, insónias, ansiedade e depressão. Não há nenhuma
cura para isto, o melhor a fazer é compreender o fenómeno e desenvolver
associações neutras a estes sons perturbadores. A tinnitus revela que o cérebro
se encontra numa análise constante ao que nos rodeia, mesmo falhando ao filtrar
o seu próprio som interno.
Perder o som do silêncio parece sufocante numa vida veloz.
Perder o som do silêncio é meio caminho feito para a dissociação da
personalidade de um indíviduo. Mas perder o som do silêncio é também uma porta
para um novo auto-conhecimento.
[1] Também conhecido
como “A Metamorfose”
[2] “What’s ringing in your ears?”
– Marc Fagelson: https://www.youtube.com/watch?v=TnsCsR2wDdk
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