As mãos são quase seres vivos [...] dotados de um espírito livre
e vigoroso, de uma fisionomia. Rostos sem olhos e sem voz que,
não obstante, vêem e falam... As mãos significam ações: fazer,
criar, às vezes, parecem até pensar.
Henri Foncillon
Diz a lenda que “o Homem é a mais bela criação do mundo”.
Um dos mais fascinantes mistérios da pré-história é o surgimento do ser humano e a sua complexidade.
A mão é um dos órgãos mais importantes do ser humano. Ela é a responsável por atividades completamente antagónicas, que variam de movimentos delicados a precisos, como escrever ou tocar um instrumento, até tarefas que exijam força e potência. É pelas mãos que nos relacionarmos com o meio externo, interagindo com tudo e com todos ao nosso redor.
Assim, podemos constatar que desde os primórdios da humanidade as mãos humanas interpretam um papel de destaque, elas tocam, ouvem, falam, expressam sentimentos…
Já na pré-história, o Homem, assimila-se e representa-se por meio da imagem feita pela própria mão. Começou por fazer marcas de mãos nas cavernas com pigmentos de extratos minerais borrifados pela boca com o auxílio de tubos, utilizando a mão como uma espécie de molde. Hoje, fazemos o mesmo gesto com as mãos sujas de tinta para marcar telas, cartazes, …, continuamos a marcar a nossa identidade, presença, expressão e sentimentos.
No dia-a-dia, podemos observar toda a forma de movimentos expressivos da vida, através das mãos, que são energias: transportadoras, receptoras, vigorosas, educadoras, suplicantes, arrebatadoras e eróticas, assim como, punidoras, destruidoras e violentas. Elas diferenciam o ser humano de todos os animais, elas têm identidade e voz própria.
Anaxágoras, filósofo grego (500 a.C. – 428 a.C.) escreveu que o Homem é o mais sábio de todos os seres porque possui mãos e é através delas que conhece o mundo, justificando esse facto com a frase “ O Homem pensa porque tem mãos”.
São vários os autores a fazer investigações sobre a ação da mão, encetando uma imensa problemática sobre os seus papéis, comparando-as com a capacidade de ver e com a atividade cerebral. Susan Stuart (2013) valoriza as capacidades de preensão, apreensão e compreensão da mão e afirma que as mãos são instrumentos sensitivos com os quais começamos a experiência que nos permite construir o mundo e que, é a partir desta construção do mundo, que nos construímos a nós próprios. Partilhando a interação da mão (sugerida por Marleau-Ponty em 1968) entre o tangível e o visível e a afirmação kantiana de que “a mão é uma janela para a mente” com um papel afetivo e corpóreo para orientar o sujeito no espaço, Susan Stuart afiança que as mãos estabelecem contacto efetivo e dinâmico de modo distinto do dos olhos e dos ouvidos. Na sua opinião, as mãos encontram perturbações, sentem a diferença e tecem a mudança, têm vontade própria.
A mão, enquanto dinâmica do corpo, é não só um órgão de desempenho, mas também um órgão de perceção; não só consegue exprimir o que lhe é comandado pelo cérebro, tal como lhe fornece informações muito úteis sobre o meio que nos envolve. É neste encontro, entre a mão e o cérebro que temos um casamento perfeito, uma relação que se potencia mutuamente. “O homem na sua jornada serve-se das mãos, não apenas para sobrevivência, mas também como instrumento de civilidade e refinamento social, onde expressa cumprimento e respeito".
Olhar as mãos faz com que cada sujeito pense no significado do gesto, no emparelhamento das mãos, no poder do toque ,e na marca com que cada uma delas, como um registo que a memória conseguiu recuperar, fez história.
Saramago escreveu uma longa série de palavras sobre as mãos conferindo-lhes uma vantagem humana, porque ao tocar, sentir, sofrer tornam o cérebro capaz de um conhecimento mágico.
“Na verdade, são poucos os que sabem da existência de um pequeno cérebro em cada um dos dedos da mão, algures entre a falange, a falanginha e a falangeta. (...) Por isso o que os dedos sempre souberam fazer de melhor foi precisamente revelar o oculto. (...) O que no cérebro possa ser percebido como conhecimento infuso, mágico ou sobrenatural, seja o que for que signifiquem sobrenatural, mágico e infuso, foram os dedos e os seus pequenos cérebros que lho ensinaram. Para que o cérebro da cabeça soubesse o que era a pedra, foi preciso primeiro que os dedos a tocassem, lhe sentissem a aspereza, o peso e a densidade, foi preciso que se ferissem nela. O cérebro da cabeça andou toda a vida atrasado em relação às mãos, e mesmo nestes tempos, quando nos parece que passou à frente delas, ainda são os dedos que têm de lhe explicar as investigações do tacto, o estremecimento da epiderme ao tocar o barro, a dilaceração aguda do cinzel, a mordedura do ácido na chapa, a vibração subtil de uma folha de papel estendida, a orografia das texturas, o entramado das fibras, o abecedário em relevo do mundo.”
José Saramago in A Caverna
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