segunda-feira, 8 de novembro de 2021

 A Imagem Humana
 

Viajar propõe sair, ir para outro lugar, conhecer outro modus operandi e, por consequência, alcançar outro entendimento. Observamos, absorvemos, questionamos e aproximamo-nos daquilo que, por vezes, não sendo novo, assim se mostra e nos surpreende mais uma vez. Por vezes esta experiência repete-se ao regressarmos aos mesmos lugares. Sentimos que algo foi renovado pois as coisas são-nos apresentadas de forma diferente, com outra roupagem, noutro ambiente. Elas apresentam-se e convidam-nos a disfrutar de uma nova experiência sempre que voltamos a elas. Rebuscamos imagens e outros registos na memória e voltamos com esperança de produzirem em nós a sensação de novidade e surpresa no reencontro. Viajar traz-nos oportunidades de reflexão.



A minha visita à exposição “A imagem Humana – Arte, Identidades e Simbolismo”, patente na “CaixaForum”, decorreu de uma viagem e estadia de fim-de-semana em Madrid. O espaço e a montagem da exposição sugeriram o percurso expositivo que fui fazendo, uma visita a culturas e civilizações antigas apresentadas em contraponto com obras de arte contemporânea. Na entrada, o mote é-nos dado pela frase de Herbert Read  - “Only by conceiving a image of the body can we situate ourselves in the external world” (in The Art of Sculpture, 1956).

O percurso faz-se por entre escultura, pintura, fotografia e instalação, provenientes de várias partes do mundo, mostrando realidades bem distintas. Nos vários suportes e materiais, encontramos a presença do desejo de divindade, poder e estatuto social. O corpo é-nos apresentado como veículo de expressão pessoal e artística. A imagem humana, ao longo dos tempos, foi sendo recreada, assumindo formas, estilos e formatos distintos, procurando manifestar as suas ideias, culturas e tradições. O foco desta exposição é claro: fazer-nos refletir nas questões da atualidade enquanto viajamos no tempo, explorando cinco temas chave – beleza ideal, retrato, o corpo divino, o corpo político e a transformação corporal. 











O discurso é acutilante. Por um lado, esta exposição convida-nos à experiência da contemplação e interpela-nos nas questões da busca constante da identidade dos povos, tantas vezes simbólica e divina, ao longo de milénios de existência humana. Por outro lado, dá‑nos conta de como vivemos rodeados de atitudes e imagens narcisistas, obcecados por um ideal de beleza que é construído e disseminado num mundo virtual. A tecnologia, viciante e manipuladora, capaz de nos influenciar e mudar, chega a ser, principalmente nas camadas mais jovens, instrumento de criação de um outro mundo, confundível com o real e o palpável. Esta inquietação acompanha o percurso da exposição, com questões que vão sendo projetadas nas paredes.

 

O outro desafio é a construção da consciência que deriva da capacidade de compreender o significado das peças em exposição. Para que tal aconteça, precisamos de desvendar a mensagem icónica codificada da obra observada. Cada obra exposta é em si mesma um sistema de relação signo/ Símbolo/ índice. Quando o seu carácter simbólico, representativo de uma época, é confrontado com outros sistemas contemporâneos, entramos em outro paradigma. Não tendo acesso ao conhecimento daquilo que constitui a mensagem icónica codificada, seja ela literal ou cultural, ficamo-nos diante da obra usufruindo apenas da experiência visual/ estética. A contemplação dá-se sem outro alcance.
 
Por conseguinte, no que diz respeito à experiência da verdadeira contemplação, para que haja reconhecimento e entendimento, recorremos às nossas capacidades cognitivas e de armazenamento na memória. É ela que nos permite criar relações com outras experiências vividas, de observação, conhecimento adquirido pela leitura e estudo de fontes e outras formas de registo visual e auditivo. As conexões são feitas no nosso cérebro. Se este recurso à memória não se processa não temos forma de identificar o que vemos e fazer o reconhecimento daquilo que observamos. Não havendo referências não somos capazes de atribuir identidade. E é aqui, neste ponto, que me leva a fazer outra conexão, a da possibilidade da falha. Se a memória nos permite o acesso a registos do passado e a criação de pontes entre tempos, espaços, factos e pessoas, a falha traz-nos a impossibilidade de estabelecer associações e ligações, de recuperar e juntar pedaços de acontecimentos que nos permitam o entendimento e a nossa própria consciência. Sem essa consciência não nos conseguimos situar no mundo.
 














Nesta viagem a Madrid, fiz-me acompanhar do livro “De Profundis, Valsa Lenta” de José Cardoso Pires, também ele acutilante e cheio de oportunidades de reflexão sobre o tema abordado na exposição. Termino com a citação de um pequeno excerto que, a meu ver, se enquadra neste meu caminho de reflexão.
 
“(…) Sem memória esvai-se o presente que simultaneamente já é passado morto. Perde-se a vida anterior. E a interior, bem entendido, porque sem referências do passado morrem os afetos e os laços sentimentais. E a noção do tempo que relaciona as imagens do passado e que lhes dá a luz e o tom que as datam e as tornam significantes, também isso. Verdade, também isso se perde porque a memória, aprendi por mim, é indispensável para que o tempo não só possa ser medido como sentido.”
 (Pires, 2015)


OBRAS CITADAS

Pires, J. C. (2015). De Profundis, Valsa Lenta. Lisboa: Relógio D'Água Editores.

 

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