A Imagem Humana
Viajar propõe sair, ir para outro
lugar, conhecer outro modus operandi e, por consequência, alcançar outro
entendimento. Observamos, absorvemos, questionamos e aproximamo-nos daquilo
que, por vezes, não sendo novo, assim se mostra e nos surpreende mais uma vez.
Por vezes esta experiência repete-se ao regressarmos aos mesmos lugares. Sentimos
que algo foi renovado pois as coisas são-nos apresentadas de forma diferente,
com outra roupagem, noutro ambiente. Elas apresentam-se e convidam-nos a disfrutar
de uma nova experiência sempre que voltamos a elas. Rebuscamos imagens e outros
registos na memória e voltamos com esperança de produzirem em nós a sensação de
novidade e surpresa no reencontro. Viajar traz-nos oportunidades de reflexão.
A minha visita à exposição “A
imagem Humana – Arte, Identidades e Simbolismo”, patente na “CaixaForum”, decorreu
de uma viagem e estadia de fim-de-semana em Madrid. O espaço e a montagem da
exposição sugeriram o percurso expositivo que fui fazendo, uma visita a culturas
e civilizações antigas apresentadas em contraponto com obras de arte
contemporânea. Na entrada, o mote é-nos dado pela frase de Herbert Read - “Only by conceiving a image of the body can
we situate ourselves in the external world” (in The Art of Sculpture, 1956).
O percurso faz-se por entre
escultura, pintura, fotografia e instalação, provenientes de várias partes do
mundo, mostrando realidades bem distintas. Nos vários suportes e materiais,
encontramos a presença do desejo de divindade, poder e estatuto social. O corpo
é-nos apresentado como veículo de expressão pessoal e artística. A imagem
humana, ao longo dos tempos, foi sendo recreada, assumindo formas, estilos e
formatos distintos, procurando manifestar as suas ideias, culturas e tradições.
O foco desta exposição é claro: fazer-nos refletir nas questões da atualidade
enquanto viajamos no tempo, explorando cinco temas chave – beleza ideal,
retrato, o corpo divino, o corpo político e a transformação corporal.
O discurso é acutilante. Por um
lado, esta exposição convida-nos à experiência da contemplação e interpela-nos
nas questões da busca constante da identidade dos povos, tantas vezes simbólica
e divina, ao longo de milénios de existência humana. Por outro lado, dá‑nos
conta de como vivemos rodeados de atitudes e imagens narcisistas, obcecados por
um ideal de beleza que é construído e disseminado num mundo virtual. A tecnologia,
viciante e manipuladora, capaz de nos influenciar e mudar, chega a ser,
principalmente nas camadas mais jovens, instrumento de criação de um outro
mundo, confundível com o real e o palpável. Esta inquietação acompanha o
percurso da exposição, com questões que vão sendo projetadas nas paredes.
O outro desafio é a construção da
consciência que deriva da capacidade de compreender o significado das peças em
exposição. Para que tal aconteça, precisamos de desvendar a mensagem icónica
codificada da obra observada. Cada obra exposta é em si mesma um sistema de
relação signo/ Símbolo/ índice. Quando o seu carácter simbólico, representativo
de uma época, é confrontado com outros sistemas contemporâneos, entramos em
outro paradigma. Não tendo acesso ao conhecimento daquilo que constitui a
mensagem icónica codificada, seja ela literal ou cultural, ficamo-nos diante da
obra usufruindo apenas da experiência visual/ estética. A contemplação dá-se
sem outro alcance.
Por conseguinte, no que diz
respeito à experiência da verdadeira contemplação, para que haja reconhecimento
e entendimento, recorremos às nossas capacidades cognitivas e de armazenamento
na memória. É ela que nos permite criar relações com outras experiências vividas,
de observação, conhecimento adquirido pela leitura e estudo de fontes e outras
formas de registo visual e auditivo. As conexões são feitas no nosso cérebro.
Se este recurso à memória não se processa não temos forma de identificar o que
vemos e fazer o reconhecimento daquilo que observamos. Não havendo referências
não somos capazes de atribuir identidade. E é aqui, neste ponto, que me leva a fazer
outra conexão, a da possibilidade da falha. Se a memória nos permite o acesso a
registos do passado e a criação de pontes entre tempos, espaços, factos e
pessoas, a falha traz-nos a impossibilidade de estabelecer associações e
ligações, de recuperar e juntar pedaços de acontecimentos que nos permitam o
entendimento e a nossa própria consciência. Sem essa consciência não nos conseguimos
situar no mundo.
Nesta viagem a Madrid, fiz-me
acompanhar do livro “De Profundis, Valsa Lenta” de José Cardoso Pires, também
ele acutilante e cheio de oportunidades de reflexão sobre o tema abordado na
exposição. Termino com a citação de um pequeno excerto que, a meu ver, se
enquadra neste meu caminho de reflexão.
“(…) Sem memória esvai-se o presente que
simultaneamente já é passado morto. Perde-se a vida anterior. E a interior, bem
entendido, porque sem referências do passado morrem os afetos e os laços
sentimentais. E a noção do tempo que relaciona as imagens do passado e que lhes
dá a luz e o tom que as datam e as tornam significantes, também isso. Verdade,
também isso se perde porque a memória, aprendi por mim, é indispensável para
que o tempo não só possa ser medido como sentido.” (Pires, 2015)
OBRAS CITADAS
Pires, J.
C. (2015). De Profundis, Valsa Lenta. Lisboa: Relógio D'Água Editores.
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