No passado dia
15 de Dezembro tive a oportunidade de ver, na Cinemateca de Lisboa, um dos
filmes mais importantes do chamado “Cinema B” Norte-Americano – “I Walked With a Zombie”, de Jaques
Tourneur. Este filme, um dos exemplos maiores de um tipo de abordagem
mais problematizada ao género de Terror (e cuja influência podemos encontrar em algumas
obras do cinema contemporâneo, sendo “Cavalo Dinheiro” de Pedro Costa, um
exemplo particularmente notório), é uma colaboração entre o cineasta e o
influente produtor Val Lewton, outra figura chave de um cinema
norte-americano que, embora inserido no contexto dos grandes estúdios, sempre
primou por um grau de sofisticação relativamente às produções, que as demarcavam de outras, suas contemporâneas.
“I Walked With a Zombie” é uma interpretação muito livre e enviesada de “Jan Eyre”, da escritora britânica Charlotte Brontë, contextualizada numa ilha não especificada das caraíbas, marcada pela forte influência da cultura Haitiana. A este respeito,
o título da obra pode induzir o espectador mais desconhecedor das colaborações
entre Tourneur e Lewton, em dúvida. Com efeito, “I Walked With a Zombie” está longe de ser um filme de terror convencional, no sentido em que os preceitos que
usualmente associamos a este género se encontram aqui, manifestamente, ausentes.
Preferindo trilhar um caminho menos comum, recorrendo para isso a mecanismos visuais como
um complexo jogo de sombras (um artifício de que Tourneur era mestre, e que
denota uma inegável influência de autores como F. W. Murnau e Robert Wiene) e
abordando de forma latente temas sociais como a questão do racismo na
sociedade, que concorre paralelamente à suposta temática do filme, produtor e
realizador encontram assim um entendimento raro (muito mais se tivermos em
consideração o tempo e contexto que esta obra foi feita), resultando num dos
filmes mais singulares e – dir-se-ia – criminosamente subestimados, da
cinematografia de terror norte-americana.
Existe uma corrente
de pensamento no cinema que explicita que um bom argumento nem sempre é sinónimo
de um bom filme, sendo tarefa do realizador o de sobrepor a sua visão
pessoal, aos eventuais constrangimentos do script.
Se partirmos desse conceito, “I Walked With a Zombie” é um filme incrivelmente
moderno e que não destoaria de outras propostas mais contemporâneas do cinema
de terror indie, como “It Follows” de David Robert Mitchell, ou do surrealismo
minimal de filmes como “Upstream Color” de Shane Carruth. O plot é bastante formulaico e passível de
ser explicado de forma sucinta: Betsy Connel (interpretada por Frances Dee) é
uma enfermeira Canadiana que aceita um trabalho numa plantação da família
Holland. Nela, a protagonista irá encontrar um empregador amargurado – Paul
Holland e Jessica, a sua esposa, que se encontra num estado catatónico e em
relação à qual Betsy terá sido contratada para cuidar. Com o decorrer da trama,
a protagonista apaixona-se pelo patriarca e – num acto de abnegação pessoal –
sacrifica tudo para conseguir curar a mulher deste. Embora a premissa seja de
uma simplicidade confrangedora, é na forma como a história é contada em termos
visuais e na recusa dos autores em tratar acriticamente o contexto em que a
trama se desenrola (uma plantação branca em que a questão da escravatura se
encontra latente) que o argumento realmente brilha. Não pela sua insípida linha
narrativa principal, como no grosso dos filmes saídos dos grandes estúdios da
época, mas no uso inteligente do sub-texto que faz durante todo o filme e que
se revela, de forma subtil mas determinante, como a força motriz desta
história.
Em termos de
direcção artística – e à semelhança de outras obras de Tourneur – os décors são
irrepreensíveis na sua função de transmitir uma atmosfera de inquietação e
desconforto ao espectador. A sonoplastia, através o constante rufar dos
tambores e a música dos nativos que permeia toso é filme é, igualmente, eficaz
na veiculação dessas emoções encontrando, talvez, na cena em que um cantor de
Calypso se propõe cantr para Betty a história dos seus empregadores, um dos
momentos de maior tensão na intriga. Betty é, de resto, uma protagonista principal
bastante convincente e geradora de empatia: Por vezes amável e genuinamente
preocupada com a sua paciente, não obstante os sentimentos que desenvolve por
Paul, noutras uma aventureira intrépida, disposta a ultrapassar os seus medos e
desvendar os mistérios da ilha e das suas gentes.
Em suma, “I Walked
With a Zombie” é uma obra que foge aos estereótipos tradicionais dos filmes de
terror, sendo até discutível se se deveria incluí-la neste género. Optando por
uma linha narrativa despojada e deceptivamente simples, a verdadeira força deste
filme sobressai na riqueza do seu sub-texto e na dualidade que este trás para a
frente: A batalha da medicina contra a magia, da cultura Judaico-Cristã contra
as tradições dos povos indígenas e de uma noção frágil e falaciosa de ordem e
civilidade contra as pulsões sexuais próprias do indivíduo. É, possivelmente, um
dos exemplos mais evidentes de como uma relação harmoniosa entre produtor e realizador
pode contribuir para o sucesso de um filme e, sem dúvida, um dos filmes de
série B mais importantes da História do Cinema Norte-Americano.
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