domingo, 27 de novembro de 2016

Tras el Cristal - Um ensaio sobre a ciclicidade da violência


(They don't make art-shockers like this anymore.
More intense than Pier Pasolini's Salo
- John Waters. Filmaker)

Estando atrasado para a sessão de curtas-metragens do festival Motel X, observei com atenção os filmes que estariam em exibição na próxima hora para decidir uma alternativa. Ora, posso ver ou um filme em que dois fantasmas famosos do cinema japonês lutam entre si numa batalha mortal por uma razão provavelmente absurda, ou então um filme arthouse espanhol sobre um homem preso a uma gaiola de vidro, reticente escolhi a segunda opção.

Tras el Cristal é um filme espanhol escrito e realizado por Agustí Villaronga em 1986. O filme foí exibido pela primeira vez em Portugal em 2016 no Cinema São Jorge durante o festival de cinema de terror Motel X.  Tras el Cristal é um filme que destoa completamente da selecção dos restantes filmes exibidos uma vez que não se encaixa de modo algum com os padrões de um "filme de terror". Enquanto a maioria dos restantes filmes exibidos têm o seu foco em situações e entidades sobrenaturais que pela sua estranheza e irrealidade provocam esse horror no espectador, o filme de Villaronga busca o horror na natureza humana e na capacidade da própria realidade ser alienante.

Antes de mais há algo que deve ser dito sobre este filme, como diz John Waters na capa do DVD da edição internacional, estamos perante um filme terrivelmente chocante, e estou de acordo que realmente é mais intenso que o Saló do Pasolini, um dos "art-shockers" mais famosos no cinema. É me difícil imaginar o contexto em que este filme é visto, é um filme de grande qualidade mas extremamente difícil de recomendar, a experiência de ver este filme é tão agradável quanto ter uma intoxicação alimentar, algo que deixa de rastos o espectador como se imagens mal digeridas ficassem a pairar sobre a sua cabeça e as quisesse vomitar. Dificilmente fora de um festival este filme teria audiência.


(Neste frame podemos ver todos os personagens principais da trama, da esquerda para a direita: 
Klaus, o pai da familia, Ângelo o enfermeiro, e Rena, a filha)

A história é simples mas terrível na forma como aborda a natureza humana. Klaus um doutor alemão nazi durante a segunda guerra é encarregado de eutanasiar crianças doentes, com o tempo ganha o gosto pelo seu oficio e descobre o fascínio pela imensa violência do seu trabalho. Após o período de loucura da guerra Klaus num momento de lucidez tenta suicidar-se aterrado pelos seus actos, não sucedendo em matar-se acaba preso a um pulmão artificial dependendo dos cuidados da sua mulher e da sua filha.  Um enfermeiro é contratado para cuidar de Klaus, Ângelo, um rapaz aparentemente educado que na verdade fora vitima dos abusos de Klaus no passado e que após ser vitima decide tornar-se abusador, recriando os actos de crueldade de Klaus perante o próprio, e abusando a própria filha, criando um ciclo de violência de agressor e vitima que se perpetua pelas gerações.

A realização cinematográfica é excelente, no filme predomina um tom azul gélido que reflecte o frio da natureza humana e a sua crueldade, e também confere um certo ar de irrealidade a todo o filme, toda a violência é tão credível mas ao mesmo tempo está tão distante das nossas vidas comuns que parece irreal, vindo de um pesadelo, mas pela veracidade com que tudo é realizado quase que nos esquecemos que estamos a ver um filme, apesar de ser uma ficção sabemos que algo semelhante e ainda mais cruel já aconteceu milhares de vezes ao longo da história e torna-se inquietante esta consciência que vivemos no mesmo mundo em que as coisas que vemos no filme acontecem. A actuação é surpreendente-mente excelente da parte dos actores mais jovens, é difícil imaginar que não estivessem cientes do significado da crueldade de toda a cena que está a ser filmada, mesmo crianças percebe-se que têm plena consciência do papel que desempenham e do que lhes está a suceder, e aperceber-se disso é arrebatador.

Acompanhando a incrível realização o filme possui um acompanhamento sonoro excepcional. A sonoplastia é imersiva e irreal, atmosférica ao ponto de nos engolir. Durante as duas horas do filme estamos quase iludidos que o que estamos a ver é real. e o tratamento sonoro torna cada detalhe horroroso do filme ainda mais nítido e grotesco, predominando ao longo de todo o filme o som assombroso do pulmão artificial que mantém o velho médico vivo. Um som sufocante que se torna cada vez mais difícil de suportar e que sem duvida irá acompanhar o espectador durante pelo menos uma hora após assistir o filme.

Em suma é um filme de qualidade excelente mas extremamente doloroso de assistir e dificilmente recomendável, a crueldade da violência com as crianças e a forma como agressor passa a vitima e vice versa é uma metamorfose agonizante de assistir. Espero que esta recensão ajude qualquer um interessado no filme a tomar a decisão se o deve ver ou não.

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