quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Gravado em K7

















Um misto de alívio, estranhamento e euforia. Quase como a confirmação de uma ainda não muito bem compreendida, mas aguardada profecia. Sina ou incumbência de uma natureza que se anuncia no corpo sem pedir licença à mente que brincava desavisada na fronteira entre a inocente e romântica rebeldia sonhadora e uma certa malícia distraída e latente.

É neste momento, tão comum, quanto marcante na vida de uma menina, em que se encontra Estela e que é traduzido, honesta e delicadamente, na primeira imagem de Califórnia, filme de longa metragem de estréia de Marina Person como realizadora, em cartaz no Cinema Ideal, no Chiado, em Lisboa.

Uma plano subjetivo, captado de cima para baixo, da personagem ao se deparar com seu primeiro período menstrual, nos convida, naturalmente à intimidade de Estela (Clara Gallo) em sua conturbada passagem pela adolescência.

O filme tem a sensibilidade de retratar com despretensiosa, mas afiada fidelidade, como era ser uma adolescente classe média em 1984, na maior cidade do Brasil e faz isso por um viés pessoal, particular e muitas vezes subestimado nas produções que tratam da época, relegadas apenas ao
lugar-comum do contexto político, pós ditadura militar e do movimento diretas-já. Califórnia preenche um espaço vazio, na expressão do inconsciente de um período. Soa como um manifesto juvenil de uma época esperançosa, não muito lembrada, mas intensamente vivida por muitos com paixão, como a da própria realizadora, que fica evidente através da importância da música na linguagem do filme, na trilha sonora de rock pós-punk de protesto nacional e internacional e também na intimidade um tanto auto-biográfica na abordagem das amizades e identificações, das descobertas, experiências e da liberdade sexual, ao mesmo tempo já ameaçada ou assombrada pela Aids, também tocada no filme.

A protagonista é a garota interessante da turma, meio introvertida e despojadamente bonita, outro acerto de Califórnia, que poderia facilmente adotar o caminho fácil do sensual e deixá-la linda e nua, mas prefere ser fiel a tendência em abandonar o formal e os padrões de beleza, presentes também na discussão do que seria uma expressão mais livre para as mulheres na época.













Estela sonha em visitar o tio Carlos (Caio Blat) e conhecer a Califórnia, ícones que representam a vanguarda e o ideal, quase uma rota dourada de fuga dos os conflitos e questões da adolescência e em direção ao que parece ser o novo, o libertário, o prazeroso. Mas a poucos dias das esperadas férias, o adorado tio volta para casa debilitado, misterioso e digamos que, interpretado por Caio Blat com menos profundidade do que se esperaria para um papel tão humano e marcante quanto o de um brasileiro homossexual e afetado pelo HIV nos anos 80; mas ainda com forte impacto na narrativa.

A realidade se impõe, como comumente parece fazer com muitos dos anseios adolescentes, que por sua vez se engrandecem em teor emocional, diante da frustração e mesmo ao mudar de tom com o tempo, impulsionam a entropia um tanto violenta da vida adulta, deixando, neste caso, apenas os postais na parede do quarto de Estela, estampada também por outros tantos ídolos sacralizados como The Cure, Smiths, Siouxie and the Banshees, New Order e o deus absoluto, David Bowie.


E é precisamente em face à desilusão com essa e uma outra paixão, que Estela abre espaço para JM Caio Horowicz, (que recebeu o prêmio de melhor ator coadjuvante no Festival de Cinema do Rio pelo filme) um garoto, que desafia o código da turma e com quem experimenta outras compatibilidades e afinidades, embalados pelas bandas que aterravam em vinis, sempre antes em São Paulo do que no resto do país e pelo existencialismo de "O estrangeiro" de Albert Camus, livro que também faz parte da história e que inspirou a faixa "Killing an Arab", primeiro single do The Cure, que figura numa das cenas mais catárticas do filme, capaz de impactar até mesmo quem não viveu ou não se chacoalhou ao som da banda emblemática.







Não foi fácil convencer o dono da música, Robert Smith, a liberá-la, já que nada deu a ele tanta dor de cabeça. Em quase 40 anos, a faixa foi diversas vezes usada com propósitos xenofóbicos, levando o músico a proibir sistematicamente seu uso.
A cineasta teve que convencer Smith de que a música não seria usada apenas para ilustrar uma cena, mas que faria parte da narrativa e felizmente conseguiu 





A sequência final do filme, destaca a realização segura, porém descompromissada, como a frenética corrida de Estela, pelas ruas de um bairro arborizado de São Paulo, acompanhada pela câmara viva e parceira e culminando com uma cena de sexo muito natural, suada, leve e espontânea até em seu nervosismo, que remete a urgência pela liberdade e pela experiência do prazer, sensações tão presentes na adolescência e nos muitos filmes sobre adolescentes e para adolescentes, mas que Califórnia, com simplicidade e autenticidade consegue fazer relembrar, reviver e por que não constatar, já na maturidade, que sim; tudo valeu a pena.







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