...mas aconteceu
Em boa hora a diminuição das restrições impostas pela pandemia permitiu o regresso do público às salas de teatro. Assim, e dando resposta à ânsia de retomar as experiências culturais, o LU.CA repôs a peça “Impossível”, de Catarina Sobral, que tinha já estado em cena neste espaço da cidade de Lisboa em 2018.
Fotografia: ©Alípio Padilha; Imagem de capa: ©Lu.Ca; na imagem: Madalena Marques |
Manhã de domingo. Comprazendo-se com os primeiros instantes de conforto na cadeira indicada, ao som de um pequeno lamelofone e com os olhos postos num enorme ponto de luz branca que emoldura a única atriz em palco, o público é levado numa viagem a um passado longínquo, de que não há memória… uma viagem ao início de tudo. Partimos no momento em que “tudo estava no mesmo sítio”, num espaço mais pequeno do que um grão de areia, até ao Big Bang e ao aparecimento das plantas, dos animais, das mulheres e dos homens. Esta é uma viagem de alguns milhões de anos resumida em vinte e cinco minutos, sem escapar nada.
Antes de começar, detém-se o olhar numa mulher singela e estática, vestida de negro, que pontua o lado esquerdo do proscénio. Em contracena, o músico que se vislumbra por trás de uma panóplia de objetos sonoros, ao lado direito do palco, dá-nos a cadência envolvente.
Imagem de capa de teaser (vimeo): ©Catarina Sobral; na imagem: Madalena Marques, mãos de Catarina Sobral. |
“Impossível” transporta-nos na primeira experiência dramatúrgica da ilustradora Catarina Sobral, cujas ilustrações ganham vida e movimento através do recurso a um retroprojetor e projeção no cenário, numa simbiose perfeita entre luz e cor, e um diálogo constante com a performer Madalena Marques, que personifica a humanidade, posicionando-se num questionamento sobre a origem do universo, enquanto vai narrando a história. A atriz reflete as inquietudes de todos nós: de onde vimos, de que somos feitos, como tudo começou? As respostas vão sendo dadas pelos elementos da ilustração, e pela interação com a ilustradora, que, não aparecendo em palco, é omnipresente pela manipulação, em tempo real, das ilustrações em transparências e pelo surgimento da sombra das suas mãos como personagem. Tarefa difícil têm estas duas criadoras, desenvolta numa consistente narração e num belíssimo trabalho de sonoplastia de F. Kent Queener que robustece a experiência de imersão na viagem.
Percebe-se, às primeiras palavras, que a mulher de
negro é a intérprete de Língua Gestual Portuguesa. Com a luz focada nas suas
mãos e no seu rosto, desenha as palavras com um movimento performativo hipnotizante,
que pede foco ao espetador, mesmo ao que consegue ouvir as palavras na
perfeição. Poderia dizer-se que a interpretação de Valentina é também uma
atuação dialogante com o espaço cénico, e não apenas uma tradução do texto oral.
Imagem: ©Lu.Ca; na imagem: Madalena Marques |
A contracena entre a atriz, a ilustração, a iluminação e o som
resultam numa combinação medida ao milímetro, ou ao “milionésimo de segundo”.
Uma opção arriscada mas com resultados arrebatadores. O jogo de movimento da
ilustração em interação com a atriz e a sonoplastia em tempo real, nascida de um piano e alguns instrumentos inusitados, marcadamente enaltecedora do momento, garantem
uma experiência inesquecível. A atuação de Madalena Marques encaixa como um
puzzle nas partículas que sobrevoam o
cenário, na corrida pelo espaço e, como que por magia, no desenho do bikini no
seu corpo, realizado à distância por Catarina Sobral; elementos que surpreendem
e deixam o público em êxtase, principalmente o público infantil, que não se
inibe em reagir entusiasticamente e em entrar na performance. Os risos das
crianças perante o crocodilo, palavra
que se diz em menos de um segundo, contagiam também os adultos. E, sem
espantar, as crianças acompanham a atriz quando esta tem de tossir muito por
causa do fumo causado pela grande explosão. Uma verdadeira orquestra de tosse
toma conta da sala do LU.CA. E a orquestra continua, numa tentativa de
acompanhar a única canção do espetáculo, que Kent e Madalena cantam em
homenagem ao Big Bang. Não faltam referências
à cultura pop, rebuscando na memória do público mais velho as vozes adultas da série Charlie Brown, reproduzidas por um kazoo,
ou uma incursão pelas alusões cinematográficas de ficção científica, como em 2001: Odisseia no Espaço.
Fotografia: ©Alípio Padilha; Imagem: ©Lu.Ca; na imagem: Madalena Marques. |
O público, este que faz a sala vibrar, sai feliz. A viagem valeu cada instante multiplicado por um milhão. Parece impossível, mas nesta viagem viram-se as partículas a olho nu, conheceram-se os nossos antepassados e, à lupa, observou-se aquilo de que somos feitos: pó de estrelas.
(Recensão elaborada a partir de experiência, na primeira fila, e notas pessoais da sessão de 8 de Maio às 11h30.)
*A experiência enriquecerá com a leitura do livro “Impossível”, de Catarina Sobral (2018, ed. Orfeu Negro), obra homónima que surgiu após a criação da peça e que se traduz num livro álbum de elevada qualidade estética e literária.
Capa e contracapa de "Impossível" (2018), de Catarina Sobral, ed. Orfeu Negro. Fotografia: fonte própria. |
Ficha técnica
Sinopse: O mundo inteiro e todas as coisas que existem para além deste, couberam, um dia, no mesmo lugar. Não sabemos como apareceu, mas sabemos que o Universo teve origem num espaço muito pequeno. Parece impossível, mas é verdade: tudo começou quando as coisas grandes eram pequenas. Através da interação entre a atriz e as imagens manipuladas em tempo real pela ilustradora, Impossível conta a história do universo, bem vista de perto (e a vários anos-luz), desde o Big Bang ao aparecimento do homem, levando-nos numa longa viagem entre partículas, estrelas e dinossáurios. (retirado de https://lucateatroluisdecamoes.pt/event/impossivel-2/)
Dramaturgia e interpretação Madalena Marques
Música e sonoplastia F Kent Queener
Imagem e manipulação Catarina Sobral
Adereços Janaína Drummond
Figurino Catarina Fernandes
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