Em duas ocasiões diferentes, tive a oportunidade de visitar a mais recente exposição de António Bolota, com curadoria de Bruno Marchand, na Culturgest, a primeira das quais teve a fortuna de ser guiada pelo próprio artista. MÃO-DE-OBRA é uma seleção de peças produzidas entre 2006 e a atualidade.
Formado em Engenharia Civil, António Bolota utiliza materiais que conhecemos do mundo da construção para criar objetos que solicitam uma experiência refrescante, de contacto e de familiaridade, que contrasta com o respeito pela grandes dimensões e com a forma impactante com que estes corpos atravessam o espaço.
O caráter conciso da exposição e a atenção ao intervalo entre as peças transmitem uma clareza e uma simplicidade que lhes permite respirar e permanecer serenas na sua monumentalidade despretensiosa. O poder sintético com que MÃO-DE-OBRA foi concebida é a sua maior força. Permite-nos viver estes objetos de uma forma limpa e sem ruído. A frieza da luz e paredes brancas que os envolvem confere-lhes um caráter de corpo estranho ao espaço, interpolador, cortante e divisivo.
Na primeira sala, surge uma enorme estrutura, um telhado com telhas marselha (marcadas com uns curiosos símbolos) suportado por longas vigas de madeira. Esta particularidade torna-o ondulado desde a esquina mais próxima da sala até ao ponto mais longínquo da divisão, perto do teto.
Um efeito análogo mas atingido de uma forma bem diferente pode ser encontrado na sala anexa à primeira. Ao fundo, vemos uma estrutura maciça que nos é apresentada como um muro de pedra seca suspenso numa viga de aço. O artista conta-nos uma poética regra quando se constrói um muro como este: quando se retira uma pedra do monte para a colocar no muro, não se pode voltar atrás. A pedra tem de encontrar o seu sítio na obra.
Mais uma vez, a peça encontra-se a poucos centímetros do chão e surge a curiosidade sobre o outro lado. Deitando-nos e deslizando por debaixo do muro (sensação curiosa a do momento em que damos conta de que estamos sob várias toneladas de pedra), chegamos a uma pequena sala sem saída, com apenas uma fonte de luz amarelada e não muito forte. Há então uma leve sensação claustrofóbica e em que o respeito pela dimensão da peça se faz sentir de um modo bem mais direto. Porém, é também neste lado que surge a deceção. Afinal, não se trata de um muro de pedra seca. A pedra está coberta por uma argamassa amarelada, e o que esta retira de simplicidade à peça não consegue ser justificado com o interesse pela textura diferente que vemos e tocamos.
Voltando ao corredor principal, ao virar da primeira esquina, avistamos mais uma enorme estrutura. Desta vez, uma espécie de serpente de betão e aço que ziguezagueia por entre os pilares de tijolo do corredor. Somos confrontados por um sereno paradoxo entre dimensão e leveza, algo que é aqui alcançado também através de um útil conhecimento da Física.
Por fim, atingimos a última sala. Uma forma de cimento bloqueia parte da entrada. Uma "bolacha" de betão de 20 toneladas apoiada apenas sobre uma (pequena em comparação) esfera metálica que deforma o vinil do pavimento cumprimenta-nos ao entrar na sala e somos mais uma vez confrontados com essa impossibilidade, com esses dois lados dos objetos, a massa enorme do disco de betão suportada por uma esfera. Este paradoxo torna-se por demais evidente quando o artista nos convida a subir para cima da peça, e então sentimos uma estabilidade que surpreende. Em cima da peça, damos conta de mais um desfasamento entre a cor da sua superfície e a cor do chão.
No exterior, encontramos ainda uma última peça, uma enorme forma vertical forrada a tijoleira. De toda a exposição, esta peça parece ser a menos interessante. Surge desfasada em relação às restantes. Não apresenta dois lados nítidos, contrários, e não atravessa o espaço de nenhuma forma particular. Chega a confundir-se com a arquitetura do edifício e o facto de se distinguir de todas as outras nestes aspetos poderia eventualmente conferir-lhe um interesse maior, em vez de menor. No entanto, essa falta de oposição, de tensão em si própria (2 lados) e no espaço tornam-na um objeto bem mais resolvido e, portanto, menos propenso à experiência estética.
Creio ser precisamente a 'familiaridade estranha' - essa proximidade com os materiais e os próprios objetos em justaposição com as suas grandes dimensões e formas aparentemente impossíveis ou, no mínimo, impressionantes - que constitui a maior força desta seleção de trabalhos e da forma como é apresentada.
A presença dos paradoxos é constante, desde a relação proximidade-monumentalidade, à de leveza e peso, passando pela relação entre materiais mortos dando origem a objetos vivos. Se por um lado, conhecemos bem a areia, a madeira, o cimento, a pedra e o aço, por outro, não lidamos com eles numa base diária sob a forma de objetos enormes, suspensos em pilares ou atravessando uma sala de uma parede à outra. O muro que atravessa o fundo da segunda sala da exposição, não parece pertencer ao espaço de um museu da mesma forma que um busto ou uma tela; a serpente de blocos de betão que ziguezagueia pelo corredor principal não passa despercebida.
No fundo, todos estes objetos interagem de uma forma muito precisa, serena e forte com o seu espaço, com a arquitetura do edifício, com o molde: «(...) para mim, a arquitetura é o molde. Depois o que eu lá ponho é um positivo. E o espectador está dentro do negativo, que é o molde». (Bolota, 2021)
Aberta ao público até 19 de Setembro, MÃO-DE-OBRA vale a pena visitar pelas suas contradições e proximidades táteis.
Website da exposição: https://www.culturgest.pt/pt/media/mao-de-obra/
Referência
Bolota, A. (2021). António Bolota em voz própria [vídeo]. Disponível em: <URL: https://www.culturgest.pt/pt/media/mao-de-obra/#voz-do-artista>
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