A escrita nunca foi senão representação: imagem.
A palavra-escrita é um labor arcaico: sulca enigmas venda e
desvenda o sentido do gesto.
Ana Hatherly
Ana Hatherly, portuguesa, nascida em 1929 na cidade do Porto, foi uma artista plástica,
poeta, ensaísta e professora que se dedicou à investigação das dimensões gestuais
da escrita e das relações entre palavra e imagem. Ao longo de sua trajetória realizou
experimentações em diversas técnicas e suportes, incluindo desde explorações
caligráficas a pintura, performance e vídeo/cinema. Em 1959 Ana publicou o primeiro
poema concreto de Portugal, mas não tarda a desviar da estética concretista que
marca esse período histórico. Um anseio pela experimentação e pela liberdade
das formas a torna a pioneira do experimentalismo em 1960, época em que passou
a investigar as formas visuais e semânticas da escrita e a construir uma trajetória
singular, integrando investigação científica e dedicação criativa no campo das
artes e da poesia.
Parte da obra
visual de Ana Hatherly é caracterizada pela gestualidade, pelo movimento da mão
que cria inquietas linhas de texto, densas texturas e volumes, múltiplas formas
que continuamente se transformam e sugerem itinerários e significações diversas.
Em seus trabalhos a escrita é desvinculada de utilitarismos e feita de visualidades,
escrita que muitas vezes se torna ilegível, apontando o significado para as formas
gestuais de sua origem.
O Pavão Negro (1999)
Tinta acrílica sobre papel
59 x 42 cm
A Revolução (1977)
Tinta acrílica sobre papel 84 x 60 cm
Essa gestualidade caligráfica na obra de Ana decorre do
estudo que ela empreendeu sobre a escrita chinesa e suas origens, o que
resultou em uma interpretação muito própria sobre como a escrita pode acolher
em sua forma o inexplicável, o acaso, o ambíguo e o incompreensível. Em alguns
de seus trabalhos pode-se notar as ressonâncias orientais, vestígios das
escritas chinesas transformados em elementos mais simples e às vezes
geometrizados, na maioria das vezes despidos de significados pré-estabelecidos.
Neles sua escrita é disforme, feita de pequenas manchas que não se configuram
como um texto propriamente dito, mas ainda assim podem ser interpretadas como
narrativas imagéticas, ricas em significado e imaginação.
Os estudos sobre a escrita chinesa levaram Ana Hatherly à uma rigorosa disciplina da
mão, num primeiro momento, transcrevendo caracteres, repetindo o gesto até que
este se tornasse natural. Essa repetição dos movimentos, bem como a compreensão
da pressão da caneta e o seu deslizar sobre folha de papel tornou sua mão “inteligente”.
Esta pesquisa sobre as diferentes grafias até às suas raízes foi dando lugar à
exploração formal dos caráteres. Esse processo de des-semantização das palavras
afasta-as da sua aparência, para as oferecer exclusivamente como formas. São
palavras-imagens que, não dizendo nada, soam sempre alguma outra coisa.
Desenho (1970)
Tinta-da-China sobre papel 65 x 50 cm
Desenho (1970)
Tinta-da-China sobre papel
65 x 50 cm
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