Desde o dia oito de Novembro e até dia cinco de Fevereiro de 2018 é possível visitar “Secrets to tell” de Grada Kilomba, que inaugura a programação da Project Room, no MAAT, com curadoria de Inês Grosso. Grada Kilomba, com raízes em Angola e São Tomé e Príncipe, atualmente vive e trabalha em Berlim, convida à um mergulho, pois adentrar na exposição da artista, é como abrir os olhos para uma nova forma de ser, pensar, falar e existir. Movida pela teoria pós-colonial, sua obra se volta para questões em torno das ideias de gênero, raça, trauma e memória.
A exposição é composta por quatro instalações, sendo duas delas no formato vídeo, e o registro de uma conversa, realizada em Berlim, com a ativista radiofônica Diana McCarty, logo após a participação da artista na 32.ᵃ Bienal de São Paulo (2016). Das instalações, são duas obras que se referem às religiões brasileiras de matriz africana, com diversos elementos e símbolos religiosos. “Table of goods” (2017), que mistura terra vegetal com outras especiarias, encontra-se no centro da sala e é logo o que se percebe ao entrar, não só pela sua disposição no espaço, mas também pelo grande conglomerado de cacau, chocolate, café, terra e velas, que chamam toda a atenção.
Um pouco atrás é possível ver o altar montado pela artista, altar que foi criado para a Bienal de São Paulo (2016) e traz, além dos artefatos, a figura da Escrava Anastácia, símbolo de emancipação durante a escravatura, que por “falar demais” lhe puseram uma mordaça (máscara de flandres). Personagem de devoção popular brasileira, cultivada tanto no Brasil como em países africanos, tem sua existência colocada em dúvida por parte dos historiadores. Mulher negra, venerada por determinados grupos e não reconhecida perante a História do Brasil.
Há duas instalações com vídeos, “Plantation Memories” (2015) e “The Desire Project” (2015 - 2016). O primeiro é uma instalação com dois canais de vídeo, que transmitem leituras representadas por cinco intérpretes, baseadas no livro “Plantation Memories. Episodes of Everyday Racism”, livro publicado em 2008 por Grada Kilomba. Já a segunda instalação, foi concebida também para a Bienal de São Paulo (2016), sendo a partir dela que “Secrets to tell” foi pensada. São três canais de vídeo transmitidos ao mesmo tempo: ATO I, ATO II e ATO III. Os vídeos são provocativos, evocam a percepção do corpo, da mulher, do negro, dentro de cenários urbanos - o que é ser diferente? quem é diferente? por que falar? por que escrever? essas são algumas das perguntas suscitadas pela instalação.
As palavra pulsam, quando entramos no Project Room, porém existe uma contradição entre o que é dito, com as múltiplas linguagens, e o espaço. A todo momento Grada Kilomba propõe um redirecionamento do olhar, a quebra de estruturas normalizadas, mas a construção do espaço expográfico, a forma como os objetos estão dispostos, apesar das belas obras, transformam o ambiente em um lugar austero. Tudo é belo enquanto linguagem, mensagem, recepção, mas a fruição estética fica aquém da potência de toda a obra. Parece não existir diálogo espacial entre as instalações.
Existe uma linha muito clara, que arremata toda a exposição. Ao falar em Anastácia, negra escravizada, ao questionar o lugar de fala, ao narrar episódios diários de racismo, Grada Kilomba aponta a necessidade de descolonizar o olhar, de descolonizar o pensamento, de dar voz ao excluídos, rejeitados, bêbados, loucos, prostitutas, meretrizes, mulheres, trans, negros, quilombolas, dentre tantos outros que foram colocados à margem.
A palavra descolonizar parece a chave-caminho para enxergar os fatos através de outras vozes. Segundo Quental, autor cujo pensamento é possível pôr em diálogo com o trabalho desenvolvido pela artista, a teoria pós-colonial - a partir da referência das agressivas experiências coloniais na Ásia e na África, comandadas pela Inglaterra, França e Alemanha - se constrói por via da problematização das “[...] estruturas de dominação herdadas do período colonial, considerando também as dimensões simbólicas e subjetivas deste processo” (2011, p. 49). Não é, no entanto, qualquer representação de mundo, qualquer ser ou qualquer conhecimento, mas aqueles forjados no sujeito ocidental, europeu, heterossexual, branco e masculino segundo a constituição do sistema-mundo moderno- colonial (QUIJANO, 2005). O pensamento vincula a criação de identidades históricas a partir da ideia de raça (branco, índio, negro, mestiço, amarelo) com a divisão do trabalho como consequência dessa racialização.
A exposição é forte, necessária, e ganha toda a força quando instalada em um museu português, não só porque o país se situa numa Europa ocidentalizada, como também por todos os símbolos de dominação e traços coloniais que Portugal apresenta. O “bom colonizador” se depara, em “Secrets to tell”, com a voz de um Outro, que agora, há de ser ouvida, pois é mais que fundamental olhar para essas questões, quebrar e redefinir conceitos. O Outro (não-ocidental, não- europeu, não-heterossexual, não-branco e não-masculino), agora, é apreendido enquanto sujeito do conhecimento e não como objeto.
REFERÊNCIAS
QUENTAL, Pedro de Araújo. A latinidade do conceito de América Latina GEOgraphia, vol. 14, no 27, págs. 46-75 2012. Disponivel em: <http://www.geographia.uff.br/index.php/geographia/article/viewFile/520/338>. Acessado em: 20 de out. de 2017.
QUIJANO, A. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (Org.). A Colonialidade do Saber: eurocentrismo e Ciências Sociais. 3. ed. Buenos Aires: CLACSO, 2005, págs. 227-278.
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