sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Das Coisas Nascem Coisas - Bruno Munari

 

Bruno Munari (Milão, 1907-1998) foi um artista, designer, ilustrador e escritor italiano, tendo contribuído com diversas investigações nos campos das artes visuais (pintura, escultura, cinema, design industrial e gráfico) e também com outros tipos de arte (literatura, poesia, didática). Munari é considerado um dos pioneiros do design moderno e uma figura essencial na história do design e da arte contemporânea. Ficou famoso pela sua abordagem experimental e lúdica, que desafiou as tradicionais convenções estabelecidas no design e incentivou a interação entre o público e as obras, explorando as relações entre forma, cor e funcionalidade. É também conhecido pelo seu conceito de "design para todos", que defendia a democratização do design e a sua capacidade de melhorar a vida quotidiana.


Das Coisas Nascem Coisas

Bruno Munari

Edições 70

1982

Publicado em 1981, Das Coisas Nascem Coisas reflete a visão única do autor sobre o design e a criatividade. É uma exploração visual e conceptual sobre o processo de transformação dos objetos quotidianos em novas formas e significados. O livro é organizado em diversos capítulos, apresentando em 388 páginas uma extensa variedade de curiosidades, problemas, soluções e exemplos práticos. Evidencia a simplicidade de todo e qualquer problema quando se domina os conceitos, técnicas e procedimentos para a sua resolução, além de destacar o design como uma peça fundamental em diversos campos e áreas de atuação. Munari utiliza exemplos do quotidiano para demonstrar que o design está diretamente relacionado com a forma como vivemos e resolvemos problemas. Questiona a utilidade de objetos e a sua forma de existir, propondo uma análise funcionalista e estética.

Este livro propõe um olhar inovador sobre como a arte e o design podem alterar a percepção das coisas ao nosso redor, convidando o leitor a refletir sobre as múltiplas possibilidades de reinterpretação e recriação de materiais e formas. São explorados temas como o processo criativo, ou seja, o processo de transformação das ideias em objetos, mostrando que o processo para compreender o uso e a funcionalidade é primordial à forma final; a funcionalidade e estética, ou seja, a funcionalidade dos objetos sobrepõe-se ao seu aspeto, um bom design não necessita de muitos elementos estéticos; a Natureza e Artefactos criados, quer dizer a comparação feita entre a natureza e os produtos criados pelo ser humano, onde o autor defende que a natureza é a matriz mais eficiente para o design. Esta estrutura faz com que o livro seja indicado tanto para os profissionais da área, como para pessoas interessadas nestas temáticas. Ainda que com uma linguagem clara, muitas vezes com um toque de humor e ironia, a sua análise mais científica pode dificultar a leitura e análise de alguns exemplos para os leigos na matéria.

Munari é conhecido pela ideia de que o “design é arte voltada para a humanidade”, explorando nesta obra esse mesmo princípio. Defende que o design deve ser sempre orientado pela função, seguindo uma maneira lógica, simples e intuitiva. Como já referido anteriormente, os objetos não surgem de um vazio, resultam da resposta a inúmeras questões que pretendem responder a necessidades humanas.

O autor defende que “Qualquer livro de cozinha é um livro de metodologia projectual”; deste modo, em um dos capítulos mais interessantes do livro reúne, num esquema simples, 12 passos para a construção de uma solução de design, fazendo uma analogia com uma receita culinária. Imaginando que o ponto de partida é um Arroz Verde, Munari defende que todo o projeto de design nasce de um Problema que exige uma resolução. Esse Problema está diretamente relacionado com uma necessidade humana. Após identificar o problema, o designer define os limites e as expectativas que irão orientar o trabalho, por exemplo, preparar um arroz verde para quatro pessoas. Os Componentes do Problema desconstroem a questão, permitindo tratar de cada subproblema individualmente, tal como separar os ingredientes necessários para a receita. A Coleta de Dados, ou “consulta de livros de culinária”, permite ao designer reunir conhecimentos pré-existentes sobre o problema e possíveis soluções. Com os dados recolhidos é possível começar a Análise dos mesmos, de forma a filtrar e selecionar as informações mais relevantes e úteis para o trabalho.  A Criatividade propõe soluções inovadoras, permite articular os limites, subproblemas e dados coletados para idealizar o produto final. Isto seria equivalente a experimentar substituir alguns ingredientes para enriquecer o sabor do arroz. Reunir os Materiais e Tecnologias, tais como uma panela ou um fogão, é essencial para garantir a viabilidade da solução. Na etapa seguinte, a Experimentação, a criatividade é aplicada para testar novas abordagens utilizando os materiais e tecnologias disponíveis. Após diversos testes surge um Modelo base para a entrega final. O modelo passa por uma Verificação e teste com o público-alvo. Com o feedback recebido percebemos se o prato que vamos servir está de acordo com os seus gostos. Agora é possível elaborar uma receita detalhada. O Desenho Construtivo detalha todas as instruções e passos necessários para replicar a solução desenvolvida, de forma precisa e eficaz. Por fim, a Solução representa todo o processo de entender o problema e os seus limites até oferecer uma resposta eficaz. Assim foi servido o Arroz Verde com porções equilibradas para quatro pessoas.

Se o processo de design passar por cada uma destas etapas garante que a solução criada não resolve apenas o problema, mas também atende às expectativas e necessidades do público-alvo. O exemplo do "Arroz Verde" ilustra como questões complexas podem ser resolvidas de forma criativa e estruturada. Ao contrário deste simples exemplo, os capítulos em que descreve uma Ficha de Análise e em que detalha a construção de vários objetos tornam-se um pouco cansativos e repetitivos, fazendo com que o leitor não preste a devida atenção a todos os exemplos apresentados. 

Esta obra acaba com uma reflexão um tanto ou quanto curiosa. A imagem que nos é apresentada mostra um Homem do Futuro, sem orelhas e nariz, incapaz de ouvir e cheirar. Com isto, o autor recorda-nos que, para projetarmos algo, não nos podemos esquecer de todos os sentidos do ser humano. Este é só mais um dos exemplos que mostra o quão prática e ilustrativa é a leitura do livro. Mesmo com algumas imagens de projetos mais complexos, técnicos e científicos, no geral encontramos uma obra cheia de problemas e soluções com um carácter dinâmico e de fácil leitura.

Das Coisas Nascem Coisas é um manual do design, ainda que não seja o manual perfeito. Munari convida o leitor a repensar a forma como observa e interage com o mundo, incentivando-o a questionar o propósito das coisas ao seu redor. É uma excelente obra para quem pretende compreender como os objetos ganham vida e como o design pode e, deveria, estar ao serviço da humanidade.





A IMAGEM DO BRASIL MODERNO EM DISPUTA

Inaugurado em 1943 no Rio de Janeiro para sediar o Ministério da Educação e Saúde do governo ditatorial de Getúlio Vargas, o Palácio Gustavo Capanema é reconhecido como um marco da arquitetura brasileira, definindo as bases estéticas e conceituais do movimento moderno no país.

A concepção de seu projeto, porém, esteve longe de ser consensual: antes de chegar à forma modernista, foi marcada por disputas em torno de como o Estado deveria se representar. Essas tensões ganharam forma no concurso de anteprojetos de 1935, cujo júri, de orientação conservadora e vinculado à tradição acadêmica, elegeu como vencedor o projeto do arquiteto Archimedes Memória, uma proposta de matriz neocolonial, adornada com elementos marajoaras. O neocolonialismo brasileiro, em oposição ao ecletismo internacional de influência européia do final do século XIX e início do XX, já buscava, antes da consolidação do modernismo de assento nacional, constituir uma linguagem arquitetônica própria para o Brasil, incorporando referências da tradição colonial local e, por vezes, elementos simbólicos da cultura pré-colombiana marajoara reinterpretados dentro do vocabulário clássico.

O então ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, chegou a premiar o projeto de Archimedes Memória. No entanto, por estar interessado em realizar uma obra com potência modernizadora e repercussão internacional, alinhada a um novo projeto cultural para o país, optou por não executá-lo. Em seu lugar, convidou Lúcio Costa, ex-diretor da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) e entusiasta do movimento moderno, para desenvolver uma nova proposta. Para compor o grupo de trabalho, Costa reuniu ex-alunos da ENBA, entre eles, Oscar Niemeyer, e convenceu Capanema a trazer ao Brasil, como consultor do projeto, o arquiteto franco-suíço Le Corbusier, principal precursor e teórico do modernismo arquitetônico e do chamado International Style. Nesse ponto, cabe uma crítica: na busca por uma expressão arquitetônica nacional, recorre-se à Europa como referência primária.

O edifício construído materializa a tentativa de conciliar os “cinco pontos” da arquitetura corbusiana, pilotis com térreo livre, planta livre, fachada livre, janelas em fita e terraço-jardim, com as soluções desenvolvidas pela chamada “escola carioca”, ajustadas às exigências do clima tropical. O resultado é um objeto arquitetônico dinâmico, que promove uma articulação intensa entre arquitetura, paisagismo e artes plásticas e que logo se tornou símbolo da arquitetura moderna brasileira.



Essa obra, pensada como símbolo do progresso e da unidade nacional, insinua, porém, uma ambiguidade fundamental entre a vanguarda estética e o poder simbólico do Estado ditatorial e incita uma questão que acompanhou toda a trajetória da arquitetura modernista brasileira: até que ponto a linguagem moderna, ao buscar a universalidade pela abstração e pela depuração formal, consegue de fato expressar a complexidade cultural de um país cuja identidade nacional é múltipla, conflituosa e está em permanente disputa?

O Palácio Gustavo Capanema permanece, assim, como obra que, do ponto de vista formal, expressa liberdade e brasilidade, mas que nasceu como emblema de um regime autoritário. Ainda assim, o despojamento estético e os princípios modernistas ali instaurados permaneceram e passaram a orientar a produção arquitetônica brasileira nas décadas seguintes.


A ascensão da estética como obsessão cultural

 A obsessão contemporânea com “aesthetics” não é um fenómeno separado das subculturas, é precisamente a forma de como muitas delas existem e se manifestam . Em vez de se escolherem grupos como punk, gótico, skater, etc., escolhe‑se uma estética: um conjunto coerente de referências visuais, objetos, cores e modos de apresentar o “eu” ao mundo, que funciona como atalho de identidade e pertença. Falar de micro‑subculturas hoje é, na prática, falar desta obsessão em viver “on aesthetic”.





Durante anos falou‑se da morte das subculturas, como se o mundo digital tivesse dissolvido qualquer sentido real de pertença ou identidade coletiva. Quando se observa a cultura contemporânea com mais cuidado, fica claro que acontece exatamente o contrário: as subculturas nunca estiveram tão vivas, apenas mudaram de forma. O que antes se manifestava em grupos bem definidas hoje espalha‑se por uma infinidade de estéticas e micromundos digitais que funcionam como pontos de encontro, códigos partilhados e linguagens visuais que unem pessoas que, de outra forma, nunca se cruzariam. Subculturas que antes precisavam de um bairro, de uma sala de concertos ou de uma fanzine fotocopiada agora nascem de um conjunto de imagens recorrentes, quase sempre descritas precisamente como uma “aesthetic”.

A cultura digital transforma‑se num grande laboratório de aesthetics, onde identidades são criadas, e reinventadas a um ritmo alucinante: cada nova pasta de inspiração, cada novo core batizado no TikTok, pode ser o embrião de uma micro‑subcultura.

Muitas vezes acreditamos que escolhemos livremente aquilo de que gostamos, mas o gosto vai sendo moldado por algoritmos, repetição visual e consensos silenciosos. Tendências que inicialmente nos deixam indiferentes, acabam por ganhar apelo simplesmente porque se tornam omnipresentes no feed.

A obsessão com aesthetics é, no fundo, a superfície visível desta transformação: por trás de cada estética “bonita” há um grupo, uma linguagem, uma forma de estar no mundo.

No fim, relacionar subculturas com a obsessão por aesthetics é perceber que uma coisa alimenta a outra. As subculturas contemporâneas precisam de estética para existir e circular, a cultura da aesthetic precisa de comunidades para não ser apenas consumo vazio e virar, de facto, linguagem viva.As subculturas não se extinguiram, reconfiguraram-se em ecossistemas visuais e afectivos que preservam o mesmo motor fundamental, a procura de comunidade.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Arquivos visuais: como o passado regressa sempre que lhe damos espaç



Os arquivos visuais tornaram-se um dos lugares mais interessantes para pensar a relação entre memória e identidade. Não porque sejam românticos ou misteriosos, mas porque revelam, de forma muito direta, como uma sociedade decide o que merece ser lembrado e o que fica fora da história.

Contrariamente ao que muitas vezes se imagina, um arquivo não é um repositório neutro. É um conjunto de escolhas: o que se guarda, o que se descarta, o que se descreve com detalhe e o que fica praticamente sem contexto.
Essas decisões
conscientes ou nãomoldam a narrativa coletiva. Determinam quais são as imagens que sustentam a nossa ideia de passado e quais são as que se tornam invisíveis.

Com a digitalização, as imagens deixaram de estar confinadas a instituições ou coleções privadas. Entraram no fluxo constante da internet, onde podem ser vistas, partilhadas, reinterpretadas e apropriadas por audiências diversas.
Uma fotografia que antes só era consultada por investigadores pode hoje ser utilizada num artigo de opinião, numa página de ativismo, numa publicação humorística ou numa discussão política.
Quando muda de contexto, muda de significado e essa transformação é inevitável.

Nenhuma imagem circula sozinha. A legenda que a acompanha, o local onde é publicada e o discurso que a rodeia condicionam a leitura.
A mesma fotografia histórica pode ilustrar uma celebração, uma advertência, uma crítica ou um debate sobre direitos, dependendo da forma como é enquadrada.
É nesta flexibilidade interpretativa que o arquivo se torna um espaço vivo.

Nas últimas décadas, comunidades que raramente tiveram visibilidade nos arquivos oficiais começaram a criar os seus próprios repositórios.
Arquivos LGBTQIA+, plataformas de memória migrante, projetos de recolha de fotografias de bairros periféricos ou de histórias familiares ignoradas pelos registos institucionais são exemplos dessa vontade de preencher lacunas.
Estes contra-arquivos não anulam os oficiais; complementam-nos e questionam-nos. Fazem-nos perguntar: porque faltam estas imagens? Quem ficou fora da história?

Vários artistas contemporâneos trabalham diretamente com materiais de arquivo para revelar o que estes escondem.
Ao reorganizar, justapor ou manipular imagens, tornam visíveis as ausências, os desequilíbrios e as falhas do registo institucional.
A arte não cria uma nova verdade, mas expõe as múltiplas versões possíveis de um mesmo passado.

Reutilizar documentos visuais implica cuidado. Fotografias de violência, de contextos coloniais ou de populações vulneráveis podem ser facilmente mal enquadradas ou instrumentalizadas.


Antes de partilhar, importa perguntar:
– Qual é o contexto desta imagem?
– Quem nela aparece e em que condições?
– O seu uso pode reforçar estereótipos ou desinformação?

 

Esta consciência não limita o acesso ao arquivofortalece-o.

 

No fim, percebemos que um arquivo visual não é um lugar onde o passado repousa. É um sistema em permanente atualização, reinterpretado a cada gesto de consulta, partilha ou recontextualização.

A memória coletiva não é uma lista fechada de acontecimentos, mas um processo contínuo de seleção e debate.

 

O passado não desaparece. Reorganiza-se. E cada imagem que volta a circular participa activamente na forma como nos compreendemos enquanto comunidade.



Carolina Malheiro

 

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Tipografia Vernacular



Motivado pelo arquivo de imagens “Arquivo do Design Não-Alinhado”, aproximei-me de práticas de comunicação gráfica populares. Refiro-me a produções, muitas vezes pintadas à mão, como panfletos, flyers, letreiros improvisados, preçários, tabuletas de tascas, cartazes de festas e muitas outras peças criadas com os materiais disponíveis. Interessei-me especialmente pela tipografia vernacular presente nesses elementos.

A palavra vernacular pode significar “doméstico”, “nativo” ou “do lugar”, algo que pertence a uma comunidade. Estas práticas são, por isso, não académicas, mas inspiradas na experiência e no saber popular. É evidente que são desenvolvidas por uma comunidade sem imposições externas, constituindo uma linguagem não institucional, que surge da necessidade de comunicar com poucos recursos e de resolver um problema visual de forma prática e imediata. Daí resultarem composições tão genuínas e espontâneas.






Talvez os exemplos mais claros de tipografia vernacular em Portugal se encontrem nos preçários e letreiros feitos à mão em mercados e feiras. Estes apresentam, em geral, uma identidade mais vincada e tradicional: demonstram destreza caligráfica e são habitualmente desenhados com marcadores sobre papéis de cores vibrantes e contrastantes.

Ainda assim, os casos que mais me suscitam interesse são os mais improvisados e espontâneos, exemplos em que as regras são interpretadas por cada indivíduo de forma singular, baseando-se no seu próprio conhecimento tipográfico, na noção de composição e na sua destreza manual.



Neste exemplo, observamos um pequeno folheto impresso a partir de uma fotocópia de uma composição realizada com letra desenhada à mão, utilizando um marcador, que confere ao objeto um aspecto redondo e amigável. É evidente a utilização de régua na base de cada linha, e o desenho das letras revela cuidado e precisão. O texto surge centrado e apresenta uma mancha visual bastante densa, devido à espessura do traço e à inexistência de entrelinha, característica que distingue de forma clara esta peça.




Aqui observamos, pendurada com arame num gradeamento, uma placa com uma mensagem de alerta sobre a entrada e saída de camiões. Trata-se de um suporte de grandes dimensões; talvez por isso o tipo de letra não apresente um caráter caligráfico (é difícil captar a expressividade do gesto manual numa superfície tão ampla), adotando antes uma aparência maioritariamente geométrica, composta exclusivamente por letras de caixa alta.
A placa inclui marcações a lápis que definem a base de cada linha, e é notória a ausência da letra “N” em “ateção” (primeira palavra). A composição demonstra grande criatividade: por alguma razão, e ao contrário das restantes letras, os “N” surgem inclinados; as formas apresentam-se mais ou menos condensadas conforme a necessidade de evitar a divisão de palavras ao trocar de linha; os tiles variam em espessura e curvatura e surgem sempre a cobrir e a ligar duas vogais; o “C” e o “G” da linha inferior são mais expressivos e irregulares; os “I” são sempre serifados; e são utilizados traços em todos os espaços entre palavras.




Neste caso, deparamo-nos com a ementa de um restaurante. Esta peça transmite espontaneidade, a começar pelo suporte: uma toalha de papel, rasgada de modo a apresentar a largura desejada. A letra manuscrita, desenhada com marcadores azul e vermelho, evoca descontração e revela uma intenção clara de conjugar as cores de forma equilibrada. Os nomes dos pratos são alinhados à esquerda, enquanto os preços alinhados à direita e são unidos por traços que preenchem o espaço entre eles com a intenção de criar uma caixa de texto retangular totalmente preenchida.


Analisei estes exemplos porque o ato manual é central à sua conceção. Trata-se de um gesto cultural e profundamente humano, que nasce do contacto direto entre um criador e um objeto, num contexto específico. As letras pintadas, frequentemente irregulares e orgânicas, refletem um pensamento visual construído a partir da experiência pessoal e não de métodos académicos e o erro converte-se em expressão, e a linguagem emerge da combinação entre imperfeições e originalidade, que dão lugar a peças por vezes altamente criativas, dotadas de uma energia e autenticidade que frequentemente se perdem nos processos mais formalizados do design contemporâneo.

Todas as imagens foram retiradas do "Arquivo do design não-alinhado".

terça-feira, 25 de novembro de 2025

A infância como forma de olhar o mundo: O principezinho

 “O Principezinho” 

A infância como forma de olhar o mundo


Sempre ouvi dizer que O Principezinho era um daqueles livros que acompanhava as pessoas durante toda a vida, mas durante anos não consegui entender porquê. Na minha cabeça, era apenas uma história para crianças, um conto infantil com o qual nunca me identifiquei nem conseguia decifrar, e talvez por isso eu não conseguisse ver nada de especial nele quando era mais nova. A verdade é que, na correria para crescer ou para entender, eu própria tinha perdido aquela forma de olhar o mundo que o livro tanto celebra: a curiosidade, o encantamento e a simplicidade com que as crianças observam o mundo.

Revisitar o livro em adulta (que na realidade foi ainda em adolescente) foi quase como limpar os óculos. De repente, tudo aquilo que me parecia óbvio e até de certa forma aborrecido, começou a ganhar profundidade. Percebi que a história não fala de infância no sentido mais literal da palavra, mas de um estado de espírito que vamos perdendo sem reparar: a capacidade de fazer perguntas sem receios, de valorizar o essencial e de não deixar que o “ser adulto” nos gele o olhar.



A realidade é que acho que é exatamente por experiências como a minha que as pessoas acabam por falar sempre deste livro, porque acredito que seja exatamente quando crescemos, ou melhor, porque crescemos que conseguimos perceber o limiar entre a simplicidade da narrativa e aquilo que ela nos quer dizer nas entrelinhas.


A história de Saint-Exupéry

Le Petit Prince, começa por introduzir um piloto que despenhou a sua avioneta no deserto, enquanto tenta arranja-la, um pequeno rapaz, que vem de outro planeta, vem ao seu encontro e pergunta se lhe consegue desenhar uma ovelha. A partir daí começa a contar a sua história pelos planetas que viajou e da sua terra natal, e assim se desenvolve a narrativa.


A viagem do príncipe pelos planetas surge como uma alegoria ao mundo dos adultos, uma viagem observacional onde cada pessoa que o príncipe encontra, representa para mim a cegueira que se apoderou de cada personagem (o rei, o bêbado, o vaidoso, o homem de negócios, etc), perdidos nas suas próprias obsessões e demasiado preocupados com os seus egoísmos e vaidades absurdas, incapazes de refletir sobre eles. No fundo a narrativa faz-nos olhar para estas personagens como um reflexo da sociedade, como somos formatados a preocupar-nos com aquilo que possuímos, escondemos  e controlamos, sem sermos capazes de viver com aquilo que verdadeiramente importa.


Em oposição a estas personagens, surgem outras que se distinguem por não serem adultos e não humanos (a raposa, a rosa), que nós caracterizamos como símbolos opostos à superficialidade humana. “O essencial é invisível aos olhos” , dito pela raposa, sumariza bastante bem aquilo que estas personagens representam: a dimensão essencial. Na lógica da vida adulta, nós devemos medir o nosso sucesso em produtividade e resultados, mas a realidade acontece entre nós pessoas, os vínculos criados e a nossa disponibilidade de estarmos vulneráveis para criar esses laços, que requerem tempo, paciência, cuidado, presença, coisas que não se vêem mas que permanecem em nós como um pequeno puzzle da nossa vida que é feito sim destas pequenas coisas.

Vejo que há uma certa sensibilidade nas crianças de sentir importância em coisas que os adultos só vêem insignificância, há um filtro que vai crescendo connosco que ainda não existe para elas, que não as deixa cegar. 


Percebi então que a infância não é apenas uma fase da vida, é uma forma de ver. E talvez o maior desafio seja não deixar que o tempo apague essa lente mais sensível, mais livre e mais verdadeira, que penso que na altura nem sejamos capazes de a ver. 

Penso muito nisso, especialmente este ano, cada vez que entro numa sala de aula para ensinar aquilo que eu acho que sei sobre arte e criatividade a “pequenos artistas”, vejo naquelas crianças uma imaginação que eu não fui capaz de ter. Sempre que levo um exercício para trabalhar em aula, vejo que sou eu a receber novas formas de o interpretar, coisas que estavam mesmo à frente do meu nariz, mas eu não consegui ver, talvez por também eu ser um adulto e já ter ganho o medo de errar. A realidade é que as crianças não precisam de explicações para poder imaginar, desenham sem medo de errar, imaginam atmosferas completamente diferentes da nossa sem pensar se são realistas, tudo aquilo que passa na cabeça delas é produto de uma imaginação que anda à solta, sem amarras e julgamentos, ao contrário de nós adultos, que temos quase de pedir permissão para imaginar…


Chega a uma altura, que eu não sei explicar quando, onde nos dizem que cobras não engolem elefantes e que o desenho não está bem feito ou não está realista, e de pouco em pouco o nosso artista interior vai se encolhendo até se moldar completamente dentro de uma forma retilínea, como um funcionário pronto para receber ordens.



A imagem da jiboia, mais do que a rosa ou a raposa, é para mim a parte que mais me impacta, e também por ser a primeira página acho que isso diz muito sobre o livro. O símbolo mais subtil de como nós usamos a nossa imaginação, a metáfora perfeita para aquilo que acontece com a nossa criatividade: a capacidade de ver para além da forma, de imaginar o impossível (a prática artística real, a que nasce por impulso). Este brilho que se mantém vivo nas crianças apenas porque ainda não lhes ensinaram a duvidar do impossível, que se torna muito difícil para nós de imaginar, quando vivemos agarrados às possibilidades, ao exato e ao realista.


Enquanto artista, ou alguém que tenta criar, considero que pertença a um grupo reduzido de adultos que se sente na obrigação quase vital de não deixar esta chama da imaginação que nasce em criança apagar-se, e por isso, hoje mais do que nunca, vou à procura de novas formas de a alimentar, num esforço constante de me reencontrar com este primeiro mundo artístico tão basilar em mim, mas mesmo assim pergunto-me “Quantos elefantes deixei de ver, porque fiquei presa à silhueta do chapéu?”.


Hoje em dia quando penso em novos projetos, ou melhor, em criar, consigo perceber que o maior desafio é o constante reaprender a ver, libertar-me das expectativas, deixar de criar para mostrar, e começar a criar para ver, tal como as crianças que usam as arte para explorar o desconhecido, deixar a arte fazer perguntas em contradição a usá-la como uma resposta, como temos tendência a fazer com tudo quando crescemos. 

Como última nota, gostaria de mencionar as ilustrações do autor no livro. Acho que é assim que as pessoas nas livrarias pensam num livro como algo infantil, através das ilustrações. Acredito que pensam ser impossível um livro para adultos ter tantos desenhos, mas Saint-Exupéry mais uma vez quebra as regras que a vida adulta impõe (especialmente na época em que foi lançado pela primeira vez) e oferece-nos de forma pequena, leve e imperfeita uma arte sem grandiosidade mas transformadora, uma arte que nos abre as portas ao significado. 






A emoção prioriza a forma e ao olhar para estas imagens sinto uma sinceridade expressiva que a mim me cativa bastante, relembra-me que é preciso ter a sensibilidade para continuar a imaginar e é aqui que volto quando preciso de me relembrar de ver o invisível.



blah blah

"Para mim, esta é a mais bela e mais triste paisagem do mundo. É a mesma paisagem da página anterior, mas eu voltei a desenhá-la para vocês a verem melhor. Foi aqui que o principezinho fez a sua aparição na Terra e, depois, desapareceu. Fixem bem esta paisagem para a poderem reconhecer se um dia fizerem uma viagem a Africa e forem ao deserto. Se passarem por este sítio, suplico-vos: não tenham pressa, fiquem um bocadinho à espera mesmo por baixo da estrela! Se vier um menino ter con-vosco, um menino que se está sempre a rir, com cabelos cor de ouro e que nunca responde quando se lhe faz uma pergunta, já sabem quem ele é. E então, por favor, sejam simpáticos! Não me deixem assim triste: escrevam-me depressa a dizer que ele voltou..."



segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Rodolphe Töpffer, ou rabiscos com significados


Rodolphe Topffer é o professor de literatura e caricaturista nascido em Geneva, na Suíça, mesmo no final do século XVIII que desempenhou um papel fundamental na invenção daquilo a que hoje chamamos a Banda Desenhada. Foram as suas inovações no século XIX que definiram muitas das estratégias narrativas que ainda usamos na criação de histórias que recorrem às imagens como principal vocabulário.

Tal como o seu pai, o Rodolph Topffer também começou por ter a ambição de se tornar um pintor paisagista, mas uma fraca acuidade visual afastou-o da pintura e encaminhou-o para uma carreira como romancista. Nessa mesma ocasião começou a fazer experiências com estórias contadas em imagens. Mas estas experiências fazia-as em privado, ou revelando-as apenas para entreter alguns dos seus alunos.

Foi o genial Johann Wolfgang Goethe (provavelmente o maior génio que a literatura alemã ofereceu ao mundo), que mantinha amigos em comum com Topffer, que o convenceu a publicar estas experiências. Goethe muito admirou as possibilidades narrativas das invenções de Topffer. Numa carta a um dos seus amigos comuns datada de Janeiro de 1831, Goethe escreve que Topffer “brilha de talento e espírito. Algumas das suas páginas são insuperáveis… Topffer está sózinho e é o único talento de que me lembro com esta originalidade”. Mas acrescenta ainda “se ele ao menos escolhesse um assunto menos frívolo no futuro e organizasse as suas ideias, ele criaria coisas que ultrapassam todas as nossas expectativas”.

Apesar de todas as declarações de originalidade que Goethe lhe atribui, talvez valha a pena apontar a influência que o romance pioneiro de Lawrence Sterne, The Life and Opinions of Tristram Shandy, exerceu sobre as ideias de Rodolph Topffer. A mistura do satírico e do absurdo, assim como a experimentação com a passagem do tempo na narrativa de Sterne parecem ter estado na génese de algumas das inovações de Rodolph Topffer.

E talvez seja justamente o modo inovador como Topffer traz o tempo e o movimento para os seus desenhos que o separa de toda a anterior tradição da caricatura e do cartune (se é que este termo possa já aqui ser usado).


Mas o objectivo deste texto não é traçar uma biografia e análise completas da obra de Topffer. É antes dar sequência aos textos que tenho vindo a escrever para este blogue e que focam a divisão entre os nossos rabiscos (os traços semi-conscientes que vamos deixando, sem fazer caso disso, nas margens dos nossos cadernos ou nos espaços vazios dos toalhetes de papel de um restaurante) e os objectos de arte pelos quais aceitamos responsabilidade. E o Rodolph Topffer deixa-nos muitas pistas para continuarmos o namoro com este tema (pelo menos, assim eu acho). É que Rodolph Topffer foi também o primeiro teórico da Banda Desenhada e publicou dois livros que tentavam explicar e ensinar as suas descobertas na caricatura e na arte narrativa. Em 1842, o
Essai d’Autographie, e em 1845 o Essai de Physiognomie. É neste segundo volume que Topffer vai explorar a semiologia da caricatura e debruçar-se sobre o modo como a produção mais ou menos acidental de linhas e a combinação surpreendente de traços fisionómicos (elementos de rostos e corpos) produzem o seu próprio sentido e criam valor simbólico e narrativo reconhecíveis pelo leitor.


O livro arruma nas suas páginas dezenas ou centenas de cabeças e rostos, todos eles plenos de significado e valor simbólico, embora produzidos de forma mais ou menos acidental e com muito pouco acabamento nos seus traços e detalhes. Por mais longe que estas figuras (ou linhas) estejam das intenções iniciais do seu criador (ou por mais imperfeitas que as consideremos), elas transportam uma personalidade e carácter próprios impossíveis de se separarem da imagem. Criaram significado e vida própria.


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COMO RESSIGNIFICAR CIDADES COLONIALISTAS?

No dia 31 de outubro de 2025, um grupo de arquitetos vinculados à Universidade de Columbia, em Nova Iorque, percorreu a zona de Belém em uma procissão pública performática como parte do projeto “TA-CHIM: Weighing a City's Colonial Legacies”, integrante da 7ª Trienal de Arquitectura de Lisboa.

Com o objetivo de documentar os vestígios da colonização de Macau na cidade, a  performance teve início no Padrão dos Descobrimentos, com a identificação, no centro do mosaico da Rosa dos Ventos, das rotas, datas e sítios da expansão imperial portuguesa. Em seguida, a procissão dirigiu-se ao Jardim da Praça do Império, onde estão representados brasões de províncias e antigas colônias ultramarinas. No Jardim Botânico Tropical, destacou-se o Arco de Macau, construído para a Seção Colonial da Exposição do Mundo Português de 1940, evento em que foram erguidas réplicas de edificações típicas de cada colônia portuguesa e “nativos” dessas regiões foram trazidos a Lisboa para serem exibidos ao público durante os meses da exposição. A etapa seguinte ocorreu na praça situada em frente ao Museu e ao Planetário da Marinha: símbolos da ciência colonial que possibilitou o aprimoramento das navegações e, concomitantemente,  a expansão do projeto imperial português. A performance foi encerrada no MAC/CCB, onde há uma exposição do projeto “TA-CHIM”, com a recriação de uma tradicional placa festiva cantonesa que narra os legados marítimos entre Lisboa e Macau.

Além de documentar esses sítios e propor uma visão crítica sobre sua presença na cidade, explorando o peso figurado do passado colonial, o grupo também propôs a criação de novas epistemologias espaciais, tanto ao mobilizar uma cartografia de vestígios coloniais em Belém, quanto ao realizar medições com sensores biométricos. 

A inquietação expressa por este projeto reflete um movimento global de questionamento e rejeição de narrativas ultrapassadas contadas por monumentos públicos. Em junho de 2020, em Bristol, manifestantes antirracistas derrubaram a estátua de Edward Colston, traficante de escravos britânico, e a lançaram em um rio, em apoio ao movimento Black Lives Matter, que sucedeu o assassinato brutal de George Floyd em maio do mesmo ano. Em julho de 2021, em São Paulo, manifestantes pelo direito a melhores condições de vida para moradores das periferias urbanas incendiaram a estátua de Manoel de Borba Gato, que homenageava os bandeirantes paulistas, grupo responsável por ações de escravização, extermínio de populações indígenas e destruição de quilombos entre os séculos XVI ao XVIII. 

Tanto esses quanto outros protestos de mesma natureza tiveram ampla repercussão na época, incitando debates intensos e polarizados entre a defesa da preservação do patrimônio material e o imperativo de desarticular discursos ofensivos e protestar contra o preconceito por meio da supressão de imagens racistas e colonialistas. Apesar das divergências, tornou-se indiscutível a necessidade de repensar e refletir sobre a memória coletiva fabricada por monumentos públicos.

Afinal, a cultura visual parte do pressuposto de que há uma camada de significados e interpretações socialmente construídas e aceitas atribuídos aos elementos visuais. Nesse sentido, a exposição de imagens racistas e colonialistas nas cidades, sem que haja um processo coletivo de ressignificação, implica a perpetuação dessas narrativas, sobretudo quando, para além da manutenção dos monumentos, ações e discursos violentos e extremistas de cunho racista e xenofóbico ganham espaço nas redes sociais, na política e nas ruas. Assim, resta o questionamento: como é possível descolonizar espaços que carregam símbolos que reverenciam fatos e personalidades hediondas? Como ressignificar cidades colonialistas?

domingo, 23 de novembro de 2025

Michael Mapes: Searching for the Subject Beyond the Surface

Michael Mapes é um artista contemporâneo norte-americano reconhecido pelos seus retratos fragmentados que combinam práticas artísticas com processos inspirados na ciência. Formado em design, desenvolveu um interesse precoce pela relação entre sistematização visual e narrativa pessoal. Ao apropriar-se de métodos científicos, tais como catalogação, taxonomia, análise laboratorial ou técnicas de arquivo, cria retratos que se situam em territórios entre a arte, a ciência e a antropologia. 

Cada obra assenta no conceito de “ADN biográfico” e apresenta-se como uma “autópsia visual” da identidade, como método de exposição das múltiplas camadas que compõem um indivíduo. Mapes desafia a noção tradicional de retrato enquanto representação unificada, mostrando um corpo de fragmentos que o espectador é convidado a reconstruir.

Mapes desconstrói e reconstrói identidades. Dedica-se à investigação da forma como percebemos a memória, os dados pessoais e a representação do indivíduo. Inspirando-se em procedimentos forenses e biológicos, reinterpreta retratos históricos, transformando-os em arquivos visuais complexos. Reunindo pequenos fragmentos, desde fotografias, recortes, cápsulas, etiquetas, fios de cabelo, entre outros elementos simbólicos, cada fragmento é organizado como se fosse uma grande amostra laboratorial.


Entre os seus trabalhos mais significativos encontram-se as séries Human Studies, Dutch Masters e Specimen Portraits.
Nos Human Studies, o artista desmonta fotografias e reorganiza-as em centenas de pequenos elementos (frascos, alfinetes entomológicos, etiquetas e objetos diversos), que evocam práticas laboratoriais. Estes fragmentos, organizados com precisão, sugerem que a identidade é um conjunto de dados, memórias e vestígios que nunca se apresentam na sua totalidade.
Na série Dutch Masters, Mapes revisita retratos históricos da pintura holandesa. Em vez de os reproduzir fielmente, analisa e reconstrói a imagem original para revelar aquilo que a tradição pictórica esconde. A desconstrução de obras canónicas permite questionar a própria história da arte, salientando como cada retrato transporta consigo convenções, escolhas e omissões.

Nos Specimen Portraits reforça a ideia de identidade como objeto de estudo. Cada retrato funciona como uma caixa-arquivo, onde a pessoa é transformada num conjunto de indícios cuidadosamente organizados. Trata-se de um processo que ultrapassa a superfície da imagem para explorar os mecanismos sociais, biográficos, materiais e simbólicos que contribuem para a construção do eu. Assim, Mapes não apenas questiona o que vemos, mas sobretudo o que não vemos quando olhamos para um retrato.


“Blauw Girl” (2018), pinning foam, insect pins, photographs, specimen containers, glass vials, fabric samples, acrylic paint, beads, human hair, doll hair, gelatin capsules, canvas, cotton thread, and rope



“Dutch Agatha” (2019), photographs, fabric samples, painted photographs, botanical specimens, spices, tea, tobacco, coffee, cast resin, clay, thread, hair, insect pins, capsules, specimen bags, and magnifying boxes



“Clelia” (2021), prints, photo prints, costume jewelry, fabric, hair, dried flowers, specimen bags, insect pins, gelatin capsules, thread, misc printed elements


Detail of “Clelia” (2021), prints, photo prints, costume jewelry, fabric, hair, dried flowers, specimen bags, insect pins, gelatin capsules, thread, misc printed elements



“Still Life specimens P4” (2021), archival prints, insect pins, map pins, magnifying boxes, specimen bags, dried fruit, and seeds


Detail of “Still Life specimens P4” (2021), archival prints, insect pins, map pins, magnifying boxes, specimen bags, dried fruit, and seeds

A busca do que existe “para além da superfície” revela uma dimensão crítica central na obra de Michael Mapes. Ao recusar a simplicidade da imagem plana, o artista expõe a complexidade da identidade humana e demonstra que o sujeito é sempre mais do que a sua aparência. As suas obras desafiam o espectador a reconsiderar a relação entre representação e verdade, sugerindo que a essência do indivíduo não reside num rosto, mas nas múltiplas camadas invisíveis que o compõem. Mapes transforma o retrato num processo de investigação, convidando-nos a participar na procura incessante pelo que permanece oculto.